Versículo 1: No primeiro ano de Belsazar, rei da Babilônia, teve Daniel um sonho e visões ante seus olhos, quando estava no seu leito; escreveu logo o sonho e relatou a suma de todas as coisas. APLCDA 105.1
Este é o mesmo Belsazar mencionado em Daniel 5. Este capítulo cronologicamente precede o quinto; mas a ordem cronológica foi aqui posta de lado para que a parte histórica do livro fique separada do resto. APLCDA 105.2
Versículos 2-3: Falou Daniel e disse: Eu estava olhando, durante a minha visão da noite, e eis que os quatro ventos do céu agitavam o mar Grande. Quatro animais, grandes, diferentes uns dos outros, subiam do mar. APLCDA 105.3
O Próprio Daniel Relata Sua Visão — A linguagem bíblica deve ser aceita literalmente, a menos que exista boa razão para considerá-la figurada. Tudo o que é figurado deve ser interpretado pelo que é literal. Que a linguagem aqui utilizada é simbólica, depreende-se do verso 17, que diz: “Estes grandes animais, que são quatro, são quatro reis, que se levantarão da Terra.” E para mostrar que isso se refere a reinos e não simplesmente a reis individuais, o anjo prossegue: “Mas os santos do Altíssimo receberão o reino.” Ao explicar o versículo 23, diz o anjo: “O quarto animal será um quarto reino na Terra.” Portanto, estes animais são símbolos de quatro grandes reinos. As circunstâncias em que surgiram, segundo a profecia, também são descritas em linguagem simbólica. Os símbolos introduzidos são os quatro ventos, o mar, quatro grandes animais, dez chifres e outro chifre que tinha olhos e uma boca, e fez guerra contra Deus e Seu povo. Temos agora que averiguar o que significam. APLCDA 105.4
Ventos, em linguagem simbólica, representam lutas, comoções políticas e guerras, como lemos em Jeremias: “Assim diz o Senhor dos Exércitos: Eis que o mal passa de nação para nação, e grande tormenta se levanta dos confins da Terra. Os que o Senhor entregar à morte naquele dia, se estenderão de uma a outra extremidade da terra.” (Jeremias 25:32, 33) O profeta fala de uma controvérsia que o Senhor terá com todas as nações. A luta e a comoção que produz toda esta destruição denominam-se “grande tempestade” na versão católica A Bíblia de Jerusalém. APLCDA 105.5
Que o vento denota luta e guerra é evidente pela própria visão. Como resultado do soprar dos ventos, reinos surgem e caem por meio de luta política. APLCDA 106.1
Mares ou águas, quando usados como símbolo bíblico, representam povos, nações e línguas. Disse o anjo ao profeta João: “As águas que viste [...] são povos, multidões, nações e línguas.” (Apocalipse 17:15) APLCDA 106.2
A definição do símbolo dos quatro animais é dada a Daniel antes do fim da visão: “Estes grandes animais, que são quatro, são quatro reis, que se levantarão da Terra.” (versículo 17) Com esta explicação dos símbolos, abre-se definitivamente diante de nós o campo da visão. APLCDA 106.3
Visto que estes animais representam quatro reis, ou reinos, perguntamos: Por onde começaremos e quais são os quatro impérios representados? Estes animais consecutivamente, visto que são numeradas desde a primeira até a quarta. A última subsiste quando todas as cenas terrenas cessam com o juízo final. Desde o tempo de Daniel até o fim da história deste mundo, haveria apenas quatro reinos universais, como aprendemos do sonho de Nabucodonosor sobre a grande imagem de Daniel 2, interpretado pelo profeta 65 anos. Daniel vivia ainda sob o reino representado pela cabeça de ouro. APLCDA 106.4
O primeiro animal desta visão deve, portanto, representar o mesmo reino que a cabeça de ouro da grande imagem, a saber, Babilônia. Os outros animais, sem dúvida, representam os reinos sucessivos representados pela imagem. Mas se esta visão abrange essencialmente o mesmo período que a imagem de Daniel 2, alguém pode indagar: Por que foi dada? Não foi suficiente a primeira visão? Respondemos: A história dos impérios mundiais é apresentada repetidas vezes para ressaltar certas características, fatos e dados adicionais. É-nos dada, segundo as Escrituras, a lição: “regra sobre regra.” No capítulo dois, são apresentados apenas os aspectos políticos do domínio mundial. No capítulo 7, os governos terrenos são-nos apresentados com relação à verdade e ao povo de Deus. Seu verdadeiro caráter é revelado pelos símbolos de animais ferozes. APLCDA 106.5
Versículo 4: O primeiro era como leão, e tinha asas de águia; enquanto eu olhava, foram-lhe arrancadas as asas, foi levantado da terra, e posto em dois pés como homem; e lhe foi dada mente de homem. APLCDA 107.1
O Leão — Na visão de Daniel 7, o primeiro animal visto pelo profeta foi um leão. Sobre o uso do leão como símbolo ver Jeremias 4:7; 50:17, 43, 44. A princípio o leão tinha asas de águia, o que denota a rapidez com que Babilônia estendeu suas conquistas sob Nabucodonosor. Na visão que estudamos o leão aparece com asas de águia. O uso simbólico das asas foi descrito de modo impressionante em Habacuque 1:6-8, onde lemos que os caldeus “voam como águia que se precipita a devorar”. APLCDA 107.2
Podemos facilmente deduzir destes símbolos que Babilônia era um reino de grande fortaleza, e que sob Nabucodonosor suas conquistas se estenderam com grande rapidez. Mas veio o momento quando suas asas lhe foram arrancadas. O leão já não se precipitava como águia sobre sua presa. Foram-se a audácia e o espírito de leão. Um coração de homem, fraco, temeroso e desfalecente, substituiu a força do leão. Tal foi o estado da nação durante os anos finais de sua história, quando se tornou fraca e afeminada pela riqueza e luxo. APLCDA 107.3
Versículo 5: Continuei olhando, e eis aqui o segundo animal, semelhante a um urso, o qual se levantou sobre um dos seus lados; na boca, entre os dentes, trazia três costelas; e lhe diziam: Levanta-te, devora muita carne. APLCDA 107.4
O Urso — Assim como na grande imagem de Daniel 2, nota-se, nesta série de símbolos, marcante deterioração à medida que descemos de um reino a outro. A prata do peito e dos braços é inferior ao ouro da cabeça. O urso é inferior ao leão. Medo-Pérsia ficou muito aquém de Babilônia quanto à riqueza, magnificência e brilho. O urso se levantou sobre um dos seus lados. O reino estava composto de duas nacionalidades, os medos e os persas. O mesmo fato foi indicado mais tarde pelos dois chifres do carneiro de Daniel 8. Acerca destes chifres se diz que o mais alto subiu por último; e do urso, o texto diz que se erguia mais de um lado que do outro. Isto se cumpriu com a divisão persa do reino, a qual subiu por último, mas alcançou maior eminência que a dos medos, e sua influência predominou sobre a nação. (Ver os comentários sobre Daniel 8:3). As três costelas significam indubitavelmente as três províncias de Babilônia, Lídia e Egito, que foram especialmente oprimidas pela Medo-Pérsia. A ordem: “Levanta-te, devora muita carne”, referia-se naturalmente ao estímulo que a conquista dessas províncias deu aos medos e persas. O caráter dessa potência está bem representado por um urso. Os medos e os persas eram cruéis e dados à prática de furto, ladrões e saqueadores do povo. O reino medo-persa continuou desde a submissão de Babilônia por Ciro até a batalha de Arbela em 331 a.C., ou seja, um período de 207 anos. APLCDA 107.5
Versículo 6: Depois disto, continuei olhando, e eis aqui outro, semelhante a um leopardo, e tinha nas costas quatro asas de ave; tinha também este animal quatro cabeças, e foi-lhe dado domínio. APLCDA 108.1
O Leopardo — O terceiro reino, a Grécia, é representado pelo símbolo de um leopardo. Se as asas do leão significavam rapidez nas conquistas, devem significar o mesmo aqui. O próprio leopardo é um animal muito rápido, mas isso não bastava para representar a carreira da nação aqui simbolizada; precisava ter asas. E duas asas, ou seja, o número de asas que o leão tinha, não eram suficientes; o leopardo tinha de ter quatro. Isso denota celeridade de movimento sem precedente, que de fato encontramos na história do reino grego. As conquistas da Grécia sob a direção de Alexandre não tiveram paralelo nos tempos antigos em seu caráter repentino e veloz. Suas realizações militares foram assim resumidas por W. W. Tarn: APLCDA 108.2
“Era mestre na combinação de várias armas; ensinou o mundo as vantagens das campanhas de inverno, o valor da perseverança levada ao máximo, e o princípio assim expresso: ‘Marchar divididos, lutar unidos’. Seu exército geralmente marchava em duas divisões, uma delas portando os fardos, enquanto que sua própria divisão viajava com pouca carga, e a velocidade de seus movimentos era extraordinária. Conta-se que ele atribuía seu êxito militar ao fato de que ‘nunca postergava nada’. [...] As enormes distâncias que atravessou em países desconhecidos implicam um alto grau de capacidade organizadora. Em dez anos teve apenas dois graves reveses. [...] Se um homem de menor calibre tivesse tentado o que ele realizou, e fracassasse, teríamos ouvido o suficiente sobre as dificuldades militares desesperadas da empresa.” APLCDA 109.1
“Tinha também este animal quatro cabeças” — O império grego manteve sua unidade por pouco mais tempo após a morte de Alexandre. Após sua brilhante carreira terminar por uma febre causada por orgia e bebedeira, o império ficou dividido entre seus quatro generais principais. A Cassandro coube a Macedônia e o ocidente da Grécia; Lisímaco recebeu a Trácia e partes da Ásia que estão no Helesponto e o Bósforo ao norte. Ptolomeu obteve o Egito, a Lídia, a Arábia e a Palestina ao sul; e Seleuco recebeu a Síria e o resto dos domínios de Alexandre no oriente. E no ano 301 a.C., com a morte de Antígono, os generais de Alexandre completaram a divisão do reino em quatro partes, que indicavam as quatro cabeças do leopardo. APLCDA 109.2
As palavras do profeta se cumpriram com exatidão. Já que Alexandre não deixou sucessor disponível, por que o colossal império não se partiu em pequenos fragmentos? Por que se dividiu apenas em quatro partes? Simplesmente porque a profecia previu e predisse. O leopardo tinha quatro cabeças, o bode tinha quatro chifres, o reino havia de ter quatro divisões; e assim aconteceu. (Ver os comentários mais completos sobre Daniel 8). APLCDA 109.3
Versículo 7: Depois disto, eu continuava olhando nas visões da noite, e eis aqui o quarto animal, terrível, espantoso e sobremodo forte, o qual tinha grandes dentes de ferro; ele devorava, e fazia em pedaços, e pisava aos pés o que sobejava; era diferente de todos os animais que apareceram antes dele e tinha dez chifres. APLCDA 110.1
Um Animal Espantoso — A inspiração não achou, na natureza, animal algum para simbolizar o poder aqui ilustrado. Não bastaria o acréscimo de cascos, cabeças, chifres, asas, escamas, dentes ou unhas a qualquer animal encontrado na natureza. Esta potência difere de todas as outras, e o símbolo é completamente diferente de tudo no reino animal. APLCDA 110.2
Poderia basear-se um volume inteiro no versículo 7; mas, por falta de espaço, somos obrigados a tratá-lo do modo mais breve aqui. Este animal corresponde, naturalmente, à quarta divisão da grande imagem: as pernas de ferro. No comentário de Daniel 2:40, demos algumas das razões que temos para crer que essa potência é Roma. As mesmas razões se aplicam à profecia que ora estudamos. Com que exatidão Roma correspondeu à porção férrea da imagem! Com que exatidão corresponde ao animal que temos diante de nós! Pelo espanto e terror que inspirava e por sua grande força, Roma correspondeu admiravelmente à descrição profética. Nunca dantes o mundo tinha visto coisa igual. Devorava como com dentes de ferro, e despedaçava tudo o que se lhe opunha. Reduzia ao pó as nações sob seus pés de bronze. Tinha dez chifres que, segundo se explica no versículo 24, seriam dez reis, ou reinos, que surgiriam desse império. Como já se notou nos comentários sobre Daniel 2, Roma foi dividida em dez reinos. Estas divisões são desde então mencionadas como as dez divisões do império romano. APLCDA 110.3
Versículo 8: Estando eu a observar os chifres, eis que entre eles subiu outro pequeno, diante do qual três dos primeiros chifres foram arrancados; e eis que neste chifre havia olhos, como os de homem, e uma boca que falava com insolência. APLCDA 110.4
Daniel estava considerando os chifres do animal e notou um movimento estranho entre eles. Outro chifre, a princípio pequeno e posteriormente mais corpulento que seus companheiros, foi subindo. Não se contentou com achar tranquilamente seu lugar e ocupá-lo; tinha que empurrar a um lado alguns dos outros chifres e usurpar-lhes o lugar. Três reinos foram arrancados diante dele. APLCDA 110.5
Um Chifre Pequeno Entre os Dez — Este chifre pequeno, como teremos mais tarde ocasião de notar mais amplamente, foi o papado. Os três chifres arrancados diante dele representavam os hérulos, os ostrogodos e os vândalos. A razão pela qual foram arrancados foi sua oposição sos ensinos e pretensões da hierarquia papal. APLCDA 111.1
“Neste chifre havia olhos, como os de homem, e uma boca que falava com insolência” — Os olhos eram emblemas adequados de astúcia, da penetração, astúcia e as arrogantes pretensões de uma organização religiosa apóstata. APLCDA 111.2
Versículos 9-10: Continuei olhando, até que foram postos uns tronos, e o Ancião de dias Se assentou; Sua veste era branca como a neve, e os cabelos da cabeça como a pura lã; o Seu trono era chamas de fogo, cujas rodas eram fogo ardente. Um rio de fogo manava e saía de diante dEle; milhares de milhares O serviam, e miríade de miríade estavam diante dEle; assentou-se o tribunal, e se abriram os livros. APLCDA 111.3
Uma Cena de Juízo — Na Palavra de Deus não se encontrará descrição mais sublime de uma cena mais inspiradora. Mas não somente as grandiosas imagens nos devem chamar a atenção; a natureza da própria cena exige nossa mais séria consideração. Aqui o juízo é apresentado. Sempre que se menciona o juízo, a reverência deve de modo irresistível ocupar todas as mentes, pois todos têm interesse em seus resultados eternos. APLCDA 111.4
Por uma tradução inadequada do versículo 9, certas versões criam uma ideia equivocada com relação aos tronos. A expressão “foram postos” resulta de uma palavra que no original não significa colocar sobre o chão, mas erigir. A palavra remi, que pode verter-se apropriadamente por “lançar ou arremessar”, como é claramente seu significado e, por isso, é usado para descrever o lançamento dos três hebreus à fornalha de fogo e de Daniel na cova dos leões. Mas outra tradução igualmente correta é “pôr em ordem”, como seria a colocação dos assentos do juízo aqui mencionados, ou um ordenamento semelhante ao mencionado em Apocalipse 4:2, onde o grego tem o mesmo significado. Por isso são corretas as traduções de Daniel 7:9 que dizem “foram postos uns tronos”. Assim define precisamente Gesênio o radical remah, com referência a Daniel 7:9. APLCDA 111.5
O “Ancião de dias”, Deus o Pai, preside o juízo. Note-se a descrição do Ser Supremo. Para os que creem na impessoalidade de Deus é forçoso reconhecer que Ele é aqui descrito como Ser pessoal; mas ousam dizer que é a única descrição deste gênero na Bíblia. Não admitimos esta última afirmação; mas, aceitando que fosse verdadeira, não se torna, uma descrição desta classe, tão fatal à teoria deles como se fosse repetida muitas vezes? Os milhares de milhares que ministram perante Ele não são pecadores arrolados diante do tribunal, mas seres celestiais que servem diante dEle, cumprindo Sua vontade. João viu os mesmos assistentes celestiais diante do trono de Deus, e descreve a majestosa cena nestas palavras: “Vi, e ouvi uma voz de muitos anjos ao redor do trono, dos seres viventes e dos anciãos, cujo número era de milhões de milhões e milhares de milhares.” (Apocalipse 5:11) Para compreender melhor estes versículos é preciso compreender os serviços do santuário. APLCDA 113.1
Porque o juízo aqui introduzido é a parte final do ministério de Cristo, nosso grande Sumo Sacerdote, no santuário celestial. É um juízo investigativo. Abrem-se os livros, e os casos de todos são apresentados para serem examinados por esse grande tribunal, para que se possa decidir quais os que receberão a vida eterna quando o Senhor vier para conferi-la a Seu povo. APLCDA 113.2
Outra passagem, Daniel 8:14, atesta que essa obra solene está sendo realizada agora mesmo no santuário celestial. APLCDA 113.3
Versículos 11-12: Então estive olhando, por causa da voz das insolentes palavras que o chifre proferia; estive olhando e vi que o animal foi morto, e o seu corpo desfeito e entregue para se queimado pelo fogo. Quanto aos outros animais, foi-lhes tirado o domínio; todavia, foi-lhes dada prolongação de vida por um prazo e um tempo. APLCDA 113.4
Fim do Quarto Animal — Há os que creem que haverá, antes da vinda do Senhor, um milênio de triunfo evangélico e reinado de justiça em todo o mundo. Outros creem que haverá um tempo de graça depois que o Senhor vier, e que durante este prazo, os justos imortais ainda proclamarão o evangelho aos pecadores mortais, e os levarão ao caminho da salvação. Nem uma nem outra destas teorias encontra apoio na Bíblia, segundo veremos. APLCDA 113.5
O quarto animal terrível continua sem haver mudança em seu caráter, e o chifre pequeno continua a proferir suas blasfêmias, encerrando seus milhões de adeptos nas ataduras da cega superstição, até que a besta é entregue às chamas devoradoras. Isso não representa sua conversão, mas sua destruição. (Veja-se 2 Tessalonicenses 2:8). APLCDA 114.1
A vida do quarto animal não se prolonga depois de desaparecer seu domínio, como ocorreu com a vida dos animais precedentes. Foi-lhe tirado o domínio, mas sua vida se prolongou por um tempo. O território dos súditos do reino de Babilônia continuava existindo, embora sujeito aos persas. Assim também sucedeu com o reino persa com relação à Grécia, e a esta no tocante a Roma. Mas que sucede ao quarto reino? O que o segue não é um governo ou estado em que tenham parte os mortais. Sua carreira termina no lago de fogo, e não tem existência posterior. O leão foi absorvido pelo urso; o urso pelo leopardo; o leopardo pelo quarto animal. Mas o quarto animal não se fusiona com outro animal. Será lançado no lago de fogo. APLCDA 114.2
Versículos 13-14: Eu estava olhando nas minhas visões da noite, e eis que vinha com as nuvens do céu um como o Filho do homem, e dirigiu-se ao Ancião de dias, e o fizeram chegar até Ele. Foi-Lhe dado domínio e glória, e o reino, para que os povos, nações e homens de todas as línguas O servissem; o Seu domínio é domínio eterno, que não passará, e o Seu reino jamais será destruído. APLCDA 114.3
O Filho do Homem Recebe o Reino — A cena aqui descrita não é a segundo vinda de Cristo a esta Terra, porque o Ancião de dias não está nesta Terra; e a vinda da qual aqui se fala é a do Ancião de dias. Ali, na presença do Pai, um reino, domínio e glória são dados ao Filho do homem. Cristo recebe o reino antes de Sua volta a esta Terra. (Ver Lucas 19:10-12). Portanto, esta é uma cena que sucede no Céu, e está intimamente relacionada com a apresentada nos versículos 9 e 10. Cristo recebe o reino no encerramento de Sua obra sacerdotal no santuário. Os povos e nações que O servirão são os redimidos (Apocalipse 21:24), não as nações ímpias da Terra, pois estas são destruídas na segundo advento de Cristo e pelo resplendor de Sua vinda. (Salmos 2:9; 2 Tessalonicenses 2:8). De todas as nações, tribos e povos da Terra sairão aqueles que servirão a Deus, com júbilo e alegria. Herdarão o reino de nosso Senhor. APLCDA 114.4
Versículos 15-18: Quanto a mim, Daniel, o meu espírito foi alarmado dentro de mim, e as visões da minha cabeça me perturbaram. Cheguei-me a um dos que estavam perto e lhe pedi a verdade acerca de tudo isto. Assim, ele me disse e me fez saber a interpretação das coisas: Estes grandes animais, que são quatro, são quatro reis que se levantarão da terra. Mas os santos do Altíssimo receberão o reino e o possuirão para todo o sempre, de eternidade em eternidade. APLCDA 115.1
A Interpretação Dada a Daniel — Não devemos ser menos ansiosos do que Daniel para compreender a verdade destas coisas. Temos certeza que quando indagarmos com sinceridade de coração, encontraremos o Senhor não menos pronto agora do que nos dias do profeta a levar-nos a um conhecimento correto destas importantes verdades. Os animais e os reinos que eles representam já foram explicados. Temos seguido o profeta em todo o curso dos acontecimentos, até a completa destruição do quarto e último animal, a derribada final de todos os governos terrestres. APLCDA 115.2
Logo a cena muda, porque lemos: “Os santos receberão o reino.” Os santos que foram desprezados, cobertos de opróbrio, perseguidos, rejeitados, considerados dentre todos os seres humanos os menos indicados para verem realizadas suas esperanças; esses receberão o reino e o possuirão para sempre. A usurpação e os desmandos dos ímpios findarão. A herança perdida será redimida. A paz e a justiça reinarão eternamente em toda a formosa expansão da Terra renovada. APLCDA 115.3
Versículos 19-20: Então, tive desejo de conhecer a verdade a respeito do quarto animal, que era diferente de todos os outros, muito terrível, cujos dentes eram de ferro, cujas unhas eram de bronze, que devorava, fazia em pedaços e pisava aos pés o que sobejava; e também a respeito dos dez chifres que tinha na cabeça e do outro que subiu, diante do qual caíram três, daquele chifre que tinha olhos e uma boca que falava com insolência e parecia mais robusto do que os seus companheiros. APLCDA 115.4
A Verdade a Respeito do Quarto Animal — Daniel compreendia tão claramente os três primeiros animais desta visão, que nenhuma dificuldade teve com referência a eles. Ficou, porém, assombrado com o quarto animal, tão espantoso e contrário à natureza. Acerca deste animal e de seus dez chifres que vieram depois, e que era maior que seus companheiros, queria mais informação. O leão é um produto da natureza, mas precisava ter duas asas para representar o reino de Babilônia. O urso também se encontra na natureza, mas como símbolo da Medo-Pérsia, as três costelas na boca do animal denotam uma ferocidade não natural. O leopardo é também um animal da natureza, mas para representar apropriadamente a Grécia, era preciso acrescentar-lhe quatro asas e quatro cabeças. Mas a natureza não fornece símbolo algum que possa adequadamente ilustrar o quarto reino. Toma-se então um animal nunca visto, um animal terrível e espantoso, com unhas de bronze e dentes de ferro, tão cruel, rapinante e feroz que, por mero amor à opressão, devorava, despedaçava e pisava a pés suas vítimas. APLCDA 116.1
Por assombroso que isto fosse ao profeta, logo lhe chamou a atenção algo ainda mais notável. Um chifre pequeno subiu e, fiel à natureza do animal de que se originou, afastou três companheiros seus. Era um chifre que tinha olhos, não os olhos incultos de um bruto, mas olhos penetrantes, argutos e inteligentes de homem. Mais estranho ainda, tinha uma boca, e com essa boca expressava palavras de orgulho e arrogância. Não é de admirar que o profeta fizesse uma indagação especial acerca deste monstro, tão irreal em seus instintos e tão feroz em suas obras e maneiras. Nos versículos seguintes são dadas sobre o chifre pequeno, especificações que capacitam o estudante da profecia a fazer aplicação deste símbolo sem perigo de engano. APLCDA 116.2
Versículos 21-22: Eu olhava e eis que este chifre fazia guerra contra os santos e prevalecia contra eles, até que veio o Ancião de Dias e fez justiça aos santos do Altíssimo; e veio o tempo em que os santos possuíram o reino. APLCDA 117.1
O Chifre Pequeno Guerreava Contra os Santos — A assombrosa ira deste chifre pequeno contra os santos atraiu particularmente a atenção de Daniel. O surgimento dos dez chifres, ou seja, a divisão de Roma em dez reinos, entre os anos 351 e 483 d.C. já foi estudada nos comentários sobre Daniel 2:41. APLCDA 117.2
Como estes chifres significam reinos, o chifre pequeno também deve denotar um reino, mas não da mesma natureza que os demais, porque era diferente dos outros, que eram reinos políticos. Agora basta averiguarmos se desde 476 d.C. surgiu entre as dez divisões do Império romano algum reino diferente de todos os demais; e se houve, qual foi? A resposta é: Sim, o reino espiritual do papado. Corresponde em todos os pormenores ao símbolo. Ver as especificações mais particularmente à medida procedamos em nosso estudo. APLCDA 117.3
Daniel viu este poder fazer guerra contra os santos. Tal guerra foi feita pelo papado? Milhares de mártires respondem que sim. Testemunham-no as cruéis perseguições infligidas pelo poder papal aos valdenses, aos albigenses e aos protestantes em geral. APLCDA 117.4
No versículo 22 parecem apresentar-se em visão três eventos consecutivos. Olhando à frente desde o tempo em que o chifre pequeno estava no apogeu do seu poder até o término da longa controvérsia entre os santos e Satanás com todos os seus agentes, Daniel vê três importantes acontecimentos que se destacam como marcos miliários ao longo do caminho: APLCDA 117.5
1. A vinda do Ancião de dias, ou seja, a posição que Jeová ocupa na abertura do juízo descrita nos versículos 9 e 10. APLCDA 117.6
2. O juízo que é dado aos santos, a saber, o momento em que os santos se sentam para julgar com Cristo durante mil anos, depois da primeira ressurreição (Apocalipse 20:1-4), designando aos ímpios o castigo merecido por seus pecados. Os mártires se sentarão então para julgar o grande poder perseguidor que, em seus dias de aflição, os perseguia como as feras do deserto, e derramava seu sangue como água. APLCDA 117.7
3. O momento em que os santos entram na posse do reino, quer dizer, quando recebem a Nova Terra. Então terá sido apagado o último vestígio da maldição do pecado e dos pecadores, raiz e ramo, e o território por tanto tempo foi mal governado pelos ímpios poderes da Terra, os inimigos do povo de Deus, será dado aos justos, a fim de que o possuam para sempre. (1 Coríntios 6:2, 3; Mateus 25:34). APLCDA 119.1
Versículos 23-26: Então, ele disse: O quarto animal será um quarto reino na terra, o qual será diferente de todos os reinos; e devorará toda a terra, e a pisará aos pés, e a fará em pedaços. Os dez chifres correspondem a dez reis que se levantarão daquele mesmo reino; e, depois deles, se levantará outro, o qual será diferente dos primeiros, e abaterá a três reis. Proferirá palavras contra o Altíssimo, magoará os santos do Altíssimo e cuidará em mudar os tempos e a lei; e os santos lhe serão entregues nas mãos, por um tempo, dois tempos e metade de um tempo. Mas, depois, se assentará o tribunal para lhe tirar o domínio, para o destruir e o consumir até ao fim. APLCDA 119.2
Surgimento e Obra do Chifre Pequeno — Talvez já se tenha dito o suficiente acerca do quarto animal (Roma) e os dez chifres, ou dez reinos, que surgiram dessa potência. O chifre pequeno requer agora atenção especial. Como se declara nos comentários sobre o versículo 8, encontramos o cumprimento da profecia concernente à ponta pequena no surgimento e na obra do papado. É tão importante quão interessante, por isso, averiguar as causas que produziram o desenvolvimento desta potência arrogante. APLCDA 119.3
Os primeiros pastores ou bispos de Roma desfrutavam um respeito proporcional à hierarquia da cidade na qual residiam. Durante os primeiros séculos da era cristã, Roma foi a maior, mais rica e mais poderosa cidade do mundo. Foi a sede do império, a capital das nações. “Todos os habitantes da Terra pertencem a Roma”, disse Juliano; e Claudino a declarou “a fonte das leis”. “Se Roma é a rainha das cidades, porque não haveria de ser seu pastor o rei dos bispos?” era o raciocínio apresentado por estes romanos. “Por que não haveria de ser a igreja romana a mãe da cristandade? Por que não haveriam de ser todas as nações suas filhas, e sua autoridade a lei soberana? Para o coração ambicioso do homem era fácil raciocinar assim — diz d’Aubigné (História da Reforma, Vol. 1, p. 8), cujas palavras citamos. — Assim o fez a ambiciosa Roma.” APLCDA 119.4
Aos bispos das diferentes partes do império romano aprazia tributar parte da honra que a cidade recebia das nações da Terra. Originalmente a honra que lhe tributavam não era da parte deles indício de que dependiam dele. “Mas” — continua d’Aubigné — “o poder usurpado cresce como uma avalancha. Admoestações a princípio simplesmente fraternais não tardaram a tornar-se ordens absolutas na boca do pontífice. [...] Os bispos ocidentais favoreciam esta usurpação dos pastores romanos, fosse por seu ciúme dos bispos orientais, ou por preferirem submeter-se à supremacia de um papa, em vez de se submeterem ao domínio de um poder temporal.” (Idem, p. 9) Tais foram as influências que se concentraram ao redor do bispo de Roma, e assim tendeu tudo a rapidamente elevá-lo ao domínio espiritual da cristandade. APLCDA 120.1
O Desafio do Arianismo — Mas o quarto século estava destinado a presenciar como se cruzava um obstáculo no caminho desse sonho ambicioso. A profecia tinha declarado que o poder representado pelo chifre pequeno derribaria três reis. No surgimento e desenvolvimento do arianismo, a princípios do século IV, e o desafio apresentado pela supremacia papal, encontramos as causas que levaram ao arrancar dos três reinos de Roma ocidental pelo poder papal. APLCDA 120.2
Ário, pároco da antiga e influente igreja de Alexandria, pregou sua doutrina ao mundo e ocasionou tão violenta controvérsia na igreja cristã, que o imperador Constantino convocou o concílio geral de Niceia em 325 para considerar e decidir acerca da doutrina ariana. Ário sustentava “que o Filho era total e essencialmente distinto do Pai; que era o primeiro e mais nobre dos seres que o Pai criou do nada, o instrumento por cuja operação subordinada o Pai Todo-Poderoso formou o universo, e portanto era inferior ao Pai tanto em Sua natureza como em Sua dignidade.” Esta opinião foi condenada pelo concílio, o qual decretou que Cristo era de uma mesma substância com o Pai. Com isso Ário foi desterrado para a Ilíria, e seus seguidores foram obrigados a dar seu assentimento ao credo composto naquela ocasião. (Mosheim, século 4, parte 2, cap. 4; Stanley, History of the Eastern Church [História da Igreja Oriental], p. 239). APLCDA 120.3
Contudo, a própria controvérsia não seria suprimida desta maneira sumária, mas continuaria por séculos a agitar o mundo cristão; e os arianos se fizeram, por toda parte, acerbos inimigos do papa e da igreja Católica Romana. Estes fatos evidenciam que a difusão do arianismo tolheria a influência do catolicismo, e que a posse de Roma e da Itália por um povo ariano seria fatal para a supremacia de um bispo católico. Mas a profecia declarara que este chifre chegaria ao poder supremo e que, para alcançar esta situação, subjugaria três reis. APLCDA 121.1
O Chifre Pequeno Derriba Três Potências Arianas — Tem havido certa divergência de opinião quanto às potências que foram derribadas para a ascensão do papado. Com relação a isso parecem bem pertinentes as seguintes observações de Albert Barnes: “Na confusão que existiu ao se fragmentar o império romano, e pelos relatos imperfeitos dos fatos ocorridos na ascensão do poder papal, não é de estranhar a dificuldade de achar anais bem claros dos acontecimentos que haveriam de ser em todos os aspectos um exato e absoluto cumprimento da visão. Entretanto, na história do papado é possível discernir o cumprimento dela com um grau razoável de certeza.” APLCDA 121.2
José Mede supõe que os três reinos arrancados foram os gregos, os lombardos e os francos; e Sir Isaac Newton supõe que foram o exarcado de Ravena, os lombardos, o senado e o ducado de Roma. Tomás Newton (Dissertations on the Prophecies, p. 217, 218) opõe sérias objeções a ambas as suposições. “Os francos não poderiam ser um desses reinos, pois nunca foram desarraigados. Os lombardos não poderiam ser, porque nunca foram submetidos pelos papas.” Diz Albert Barnes: “Não acho, na verdade, que o reino dos lombardos estivesse, como se declara comumente, entre o número das soberanias temporais que foram submetidas à autoridade dos papas.” (Albert Barnes, Notes on Daniel, p. 327, sobre Daniel 7:25). O senado e o ducado de Roma não puderam ser um desses chifres, pois nunca vieram a constituir um dos dez reinos, três dos quais foram arrancados diante do chifre pequeno. APLCDA 121.3
Percebemos, porém, que a principal dificuldade na aplicação que estes comentadores fizeram da profecia consistia no fato de suporem que a profecia sobre a exaltação do papado não se havia cumprido e não podia cumprir-se até o papa se tornar príncipe temporal. Por isso, procuravam encontrar o cumprimento da profecia nos acontecimentos que favoreceram a soberania temporal do papa. Mas evidentemente a profecia dos versículos 24 e 25 se refere, não ao seu poder civil, mas ao seu poder de dominar a mente e a consciência dos homens. O papa alcançou essa posição em 538 d.C., como se verá mais tarde. APLCDA 122.1
A palavra “diante” usada nos versículos 8 e 20 é a tradução do grego qadam, cujo radical significa “frente a”. Combinada com min, que significa “de”, como se encontra nestes dois versículos, Davidson a traduz “da presença de”, e Gesênio diz que equivale ao termo hebraico lipna, que significa “na presença de”. Portanto corresponde a nosso advérbio de lugar “diante de”, como sucede na mesma frase que se encontra no versículo 10, onde se traduz de modo adequado “diante dele”. Temos, pois, no versículo 8 o quadro do chifre pequeno que vai subindo entre os dez e arranca pela força três chifres diante de si. No versículo 20 é declarado que três chifres “caíram” diante dele, como se fossem vencidos por ele. No versículo 24, lemos que outro rei, que representa o chifre pequeno “abaterá a três reis [chifres]”, evidentemente por atos de força. Embora a palavra qadam é usada também para denotar uma comparação de tempo, como no versículo 7, onde é vertida pela palavra “antes”, não resta a menor dúvida de que se usa como advérbio de lugar nos três versículos citados acima. Com esta interpretação está de acordo Eduardo Elliot. APLCDA 122.2
Positivamente afirmamos que as três potências ou chifres arrancados diante do papado foram os hérulos, os vândalos e os ostrogodos, e esta posição se baseia em dados históricos fidedignos. Odoacro, o chefe os hérulos, foi o primeiro dos bárbaros que reinaram sobre os romanos. Subiu ao trono da Itália em 476, segundo Gibbon, que diz, acerca de suas crenças religiosas: “Como o resto dos bárbaros, tinha sido instruído na heresia ariana; mas reverenciava os caracteres monásticos e episcopais; e o silêncio dos católicos atesta a tolerância que lhes concedeu” (Decline and Fall of the Roman Empire, Vol. 3, cap. 36, p. 510, 515, 516). APLCDA 123.1
O mesmo autor declara: “Os ostrogodos, os burgúndios, os suevos e os vândalos, que haviam escutado a eloquência do clero latino, preferiam as lições mais inteligíveis de seus mestres domésticos; e o arianismo foi adotado como a fé nacional dos guerreiros conversos que se haviam assentado sobre as ruínas do Império Ocidental. Essa irreconciliável diferença de religião era fonte perene de ciúme e ódio; e a censura de ser bárbaro era exacerbado pelo epíteto mais odioso de herético. Os heróis do norte, que se haviam submetido com certa relutância a crer que todos os seus antepassados estavam no inferno, ficaram assombrados e exasperados ao saberem que eles próprios haviam apenas mudado o modo de sua condenação eterna” (Idem, cap. 37, p. 547). APLCDA 123.2
A doutrina ariana teve uma influência notável sobre a igreja daquele tempo, como demonstram os seguintes parágrafos: APLCDA 124.1
Stanley (History of the Eastern Church, p. 151) diz: APLCDA 124.2
“Toda a vasta população goda que desceu sobre o Império Romano, no que tinha de cristã, acatou a fé do herege alexandrino. Nossa primeira versão teutônica das Escrituras foi feita por um missionário ariano, Ulfilas. O primeiro conquistador de Roma, Alarico, e o primeiro conquistador da África, Genserico, eram arianos. Teodorico o Grande, rei da Itália e herói mencionado na epopeia dos nibelungos era ariano. O lugar vazio em sua tumba maciça de Ravena atesta a vingança que os ortodoxos tomaram contra sua memória, quando derribaram, em triunfo, a urna de pórfiro em que seus súditos arianos lhe haviam guardado as cinzas.” APLCDA 124.3
Ranke (History of the Popes, Vol. 1, p. 9) diz: APLCDA 124.4
“Porém, ela [a igreja] caiu, como era inevitável, em muitas situações embaraçosas, e viu-se numa condição completamente alterada. Um povo pagão se apoderou da Grã-Bretanha; reis arianos tomaram a maior parte do resto do Ocidente; ao passo que os lombardos, por longo tempo fiéis ao arianismo, estabeleceram, como seus vizinhos mais perigosos e hostis, poderosa soberania mesmo às portas de Roma. Enquanto isso os bispos romanos, assediados por todos os lados, se esforçaram, com toda a prudência e perseverança que continuaram sendo seus atributos peculiares, para recuperar o domínio, ao menos em sua diocese patriarcal. APLCDA 124.5
Maquiavel (History of Florence, p. 14) diz: APLCDA 124.6
“Quase todas as guerras que os bárbaros do norte travaram na Itália, pode-se aqui observar, foram ocasionadas pelos pontífices; e as hordas que inundaram o país foram geralmente chamadas por eles.” APLCDA 124.7
A relação que estes reis arianos mantinham com o papa, pela qual se pode ver que teriam de ser submetidos para se abrir o caminho à supremacia papal, é mostrada no seguinte testemunho de Mosheim, em sua história eclesiástica (An Ecclesiastical History, Ancient and Modern, vol. 1, p. 113, 114): APLCDA 124.8
“Por outro lado se estabelece, mediante uma variedade dos mais autênticos registros, que tanto os imperadores como as nações em geral estavam longe de dispor-se a suportar com paciência o jugo de servidão que os papas impunham à igreja cristã. Os príncipes godos puseram limites ao poder daqueles arrogantes prelados da Itália; a ninguém permitiam que fosse elevado ao pontificado sem sua aprovação, e se reservavam o direito de julgar a legalidade de cada nova eleição.” APLCDA 124.9
Um caso comprobatório desta declaração ocorreu na história de Odoacro, o primeiro rei ariano já mencionado, segundo o relato de Arquibaldo Bower em sua obra The History of the Popes, Vol. 1, p. 271. Quando, ao morrer o papa Simplício, em 483, o clero e o povo se haviam congregado para a eleição de um novo papa, de repente Basílio, prefeito do pretório e lugar-tenente do rei Odoacro, se apresentou na assembleia; expressou sua surpresa de que sem ele se realizasse um ato como a designação de um sucessor do falecido papa; em nome do rei declarou que ficava anulado tudo o que se havia feito; e ordenou que se reiniciasse a eleição. APLCDA 125.1
Enquanto isso, Zenão, imperador do Oriente e amigo do papa, ansiava por expulsar Odoacro da Itália (Maquiavel, op. cit., p. 6), movimento que ele logo teve a satisfação de ver realizado sem dificuldade para si. Teodorico assumiu o trono do reino ostrogodo da Mésia e Panônia. Como era amigo de Zenão, escreveu explicando-lhe que resultava impossível reter os seus godos dentro da empobrecida província da Panônia, e lhe pedia permissão para levá-los a alguma região mais favorável que pudessem conquistar e possuir. Zenão lhe deu permissão para marchar contra Odoacro e apoderar-se da Itália. De acordo com isso, depois de cinco anos de guerra ficou destruído o reino hérulo da Itália, Odoacro foi morto traiçoeiramente, e Teodorico estabeleceu seus ostrogodos na península itálica. Como já se indicou, era ariano, e conservou a lei de Odoacro, que submetia a eleição do papa à aprovação do rei. APLCDA 125.2
O seguinte incidente mostrará quão completamente o papado esteve sujeito ao seu poder. Como os católicos do Oriente haviam iniciado uma perseguição contra os arianos em 523, Teodorico chamou o papa João à sua presença e assim lhe falou: APLCDA 126.1
“Se o imperador [Justino, predecessor de Justiniano] não acha conveniente revogar o edito que proclamou ultimamente contra os de minha religião [a saber, os arianos], é minha firme resolução promulgar um edito e vê-lo por toda parte executado com o mesmo rigor. Os que não professam a fé de Niceia são hereges para ele, e os que a professam são hereges para mim. Qualquer coisa que possa escusar ou justificar sua severidade para com os primeiros, escusará e justificará a minha para com os últimos. Mas, o imperador — continuou o rei — não tem ao seu redor ninguém que ouse dizer franca e abertamente o que pensa, nem escutaria a quem o fizesse. Mas a grande veneração que ele professa por vossa Sé não deixa dúvida de que ele vos ouviria. Portanto quero que vos dirijais imediatamente a Constantinopla e lá protesteis, em meu nome e no vosso próprio, contra as violentas medidas tomadas temerariamente por aquela corte. Está em vosso poder dissuadir delas o imperador; e até que o tenhais feito, mais ainda, até que os católicos [este nome Teodorico aplica aos arianos] sejam restaurados ao livre exercício de sua religião e a todas as igrejas das quais foram expulsos, não deveis pensar em voltar à Itália.” (Bower, History of the Popes, Vol. 1, p. 325). APLCDA 126.2
O papa que recebeu do imperador a ordem tão peremptória de não pisar novamente em solo italiano enquanto não houvesse cumprido a vontade do rei, certamente não podia esperar muito progresso para nenhuma espécie de supremacia enquanto esse poder não fosse afastado do caminho. APLCDA 126.3
Os sentimentos que os partidários papais abrigavam para com Teodorico podem ser avaliados com exatidão, a julgar por uma citação já feita, pela vingança que eles fizeram contra sua memória. De sua tumba imponente em Ravena arrancaram a urna em que seus súditos arianos haviam guardado suas cinzas. Mas esses sentimentos são expressos na linguagem de Barônio, que acusa “Teodorico de haver sido um bárbaro cruel, um tirano bárbaro e um ímpio ariano.” (Baronio’s Annals, A. D. 526, p. 116; Bower, op, cit., vol. 3, p. 328). APLCDA 126.4
Enquanto os católicos sentiam assim o restrito poder de um rei ariano na Itália, sofriam violenta perseguição dos vândalos arianos na África. (Gibbon, op. cit., cap. 37, sec. 2). Elliot, em sua Horae Apocalypticae, vol. III, p. 152, nota 3, diz: “Os reis vândalos não eram somente arianos, mas também perseguidores dos católicos, tanto na Sardenha e na Córsega, sob o episcopado romano, como na África.” APLCDA 127.1
Tal era a situação quando, em 533, Justiniano iniciou suas guerras contra os vândalos e os godos. Desejando contar com a influência do papa e o partido católico, promulgou aquele memorável decreto que constituiria o papa o cabeça de todas as igrejas, e de cuja execução, em 538, data o início da supremacia papal. E quem quer que leia a história da campanha africana (533-534) e da campanha italiana (534-538) notará que os católicos em toda parte saudaram como libertadores os soldados do exército de Belisário, general de Justiniano. APLCDA 127.2
Mas nenhum decreto como o referido podia entrar em vigor enquanto não fossem arrancados os chifres arianos que a ele se opunham. As coisas mudaram, porém, pois nas campanhas militares da África e da Itália as legiões vitoriosas de Belisário em 534 deram ao arianismo um golpe tão demolidor que foram vencidos seus líderes. APLCDA 127.3
Procópio relata que Justiniano empreendeu a guerra africana para aliviar os cristãos (católicos) daquela região, e que quando expressou seu intento a esse respeito, o prefeito do palácio quase o dissuadiu de seu propósito; mas teve um sonho no qual se lhe ordenou “não se esquivar à execução de seu desígnio, porque, ajudando aos cristãos, ele derribaria o poder dos vândalos.” (Teodoreto e Evagrio, Ecclesiastical History, Livro 4, capítulo 16, p. 399). APLCDA 127.4
Diz Mosheim: APLCDA 128.1
“É verdade que os gregos que haviam recebido os decretos do concílio de Niceia [quer dizer, os católicos], perseguiam e oprimiam os arianos onde quer que sua influência e autoridade podiam alcançar; mas por sua vez os partidários do concílio de Niceia não eram menos rigorosamente tratados por seus adversários [os arianos], particularmente na África e na Itália, onde sentiam, de forma muito severa, o peso do poder dos arianos e a amargura de seu hostil ressentimento. Os triunfos do arianismo foram, porém, transitórios; e seus dias de prosperidade ficaram inteiramente eclipsados quando os vândalos foram expulsos da África, e os godos da Itália, pelas armas de Justiniano.” (Mosheim, An Ecclesiastical History Ancient and Modern, vol. 1, p. 142, 143). APLCDA 128.2
Elliot resume o assunto assim: “Poderia citar três membros da lista dada a princípio que foram desarraigados de diante do papa, a saber, os hérulos, sob Odoacro, os vândalos, e os ostrogodos.” (Horae Apocalypticae, vol. 3, p. 139, nota 1). APLCDA 128.3
Com base no testemunho histórico citado, cremos ter ficado claramente estabelecido que os três chifres arrancados eram as potências mencionadas: os hérulos, em 493, os vândalos, em 534, e os ostrogodos finalmente em 554, embora a oposição efetiva desses últimos ao decreto de Justiniano cessou quando foram arrancados de Roma por Belisário em 538 (Student’s Gibbon, p. 309-319). APLCDA 128.4
O chifre pequeno ia proferir “palavras contra o Altíssimo” — Esta profecia foi infelizmente cumprida na história dos pontífices. Eles procuraram, ou pelo menos permitiram, que se lhes aplicassem títulos que seriam hiperbólicos ou blasfemos, se fossem aplicados a um anjo de Deus. APLCDA 128.5
Lucio Ferraris, em sua Prompta Bibliotheca referida pela Catholic Encyclopedia como “uma verdadeira enciclopédia de conhecimentos religiosos”, declara em um artigo onde trata do papa: APLCDA 128.6
“O papa é de tão grande dignidade e exaltação que não é um simples homem, senão como se fosse Deus, e o vigário de Deus. [...] O papa é de dignidade tão sublime e suprema que, falando com propriedade, não fora estabelecido em algum grau de dignidade, antes foi posto no mesmo cume de todas as dignidades. [...] O papa é chamado santíssimo porque, presume-se, legitimamente o é. APLCDA 128.7
“Só o papa merece ser chamado ‘santíssimo’ porque somente ele é o vigário de Cristo, manancial, fonte e plenitude de toda a santidade. [...] ‘É igualmente o monarca divino, imperador supremo, o rei de reis’. [...] Daí que o papa porta uma coroa tríplice, como rei do céu, da terra e das nações inferiores. [...] Ademais, a superioridade e o poder do pontífice romano não se referem só às coisas celestiais, às terrenas e às que estão debaixo da terra, senão às que chegam até os anos, pois é maior que eles. [...] De maneira que se fosse o caso de os anjos errarem na fé, ou pensassem de modo contrário à fé, poderiam ser julgados e excomungados pelo papa. [...] Porque ele tem tão grande dignidade e poder que forma com Cristo um e o mesmo tribunal [...] APLCDA 129.1
“O papa é como se fosse Deus na terra, só soberano dos fiéis de Cristo, principal rei de reis, que tem a plenitude do poder, a quem o Deus onipotente confiou não só a condução do terreno, como também do reino celestial. [...] O papa tem tão grande autoridade e poder que pode modificar, explicar ou interpretar ainda as leis divinas” (Traduzido de Lucio Ferraris, em sua Prompta Bibliotheca, art. “Papa”, II, vol. 6, p. 26-29). APLCDA 129.2
Cristóvão Marcelo, na quarta do quinto concílio de Latrão, numa oração dirigida ao papa, exclamou: “Tu és o pastor, tu és o médico, tu és o diretor, tu és o lavrador; finalmente é outro Deus na terra.” (P. Juan Arduino, Acta Conciliorum, vol. 9, p. 1651). APLCDA 129.3
Diz Adam Clarke, com referência ao versículo 25: APLCDA 129.4
“‘Falará como se fosse Deus.’ Assim São Jerônimo cita a Símaco. A ninguém pode isso aplicar-se tão bem e plenamente como aos papas de Roma. Eles assumiram a infalibilidade, que só pertence a Deus. Professam perdoar pecados, coisa que só pertence a Deus. Professam abrir e fechar o céu, o que só pertence a Deus. Professam ser superiores a todos os reis da terra, o que só pertence a Deus. E vão além de Deus ao pretenderem liberar nações inteiras de seu juramento de fidelidade aos seus reis, quando tais reis a elas não agradam. E vão contra Deus quando dão indulgências pelo pecado. Esta é a pior de todas as blasfêmias.” (Adam Clarke, Commentary on the Old Testament, vol. 4, p. 596, nota sobre Daniel 7:25). APLCDA 129.5
O chifre pequeno “magoará os santos do Altíssimo” — Requer-se pouca investigação histórica para provar que Roma, tanto nos tempos antigos como durante a Idade Média, perseguiu a igreja de Deus. Abundantes provas podem ser apresentadas para demonstrar que, antes e depois da Reforma, as guerras, as cruzadas, as matanças, as inquisições e perseguições de todas as classes foram os métodos adotados para obrigar a todos a submeter-se ao jugo romano. APLCDA 130.1
A história da perseguição medieval espanta e nos custa alongar-nos em seus detalhes. Comentando sobre esta profecia, Barnes declara: APLCDA 130.2
“Pode alguém duvidar que isto é verdade com referência ao papado? A inquisição, as perseguições aos valdenses, os massacres do duque de Alba, as fogueiras de Smithfield, as torturas em Goa; em verdade toda a história do papado pode ser invocada para provar que essa declaração se aplica à referida potência. Se houve alguma coisa que procurou quebrantar ‘os santos do Altíssimo’, que os teria riscado da Terra para que a religião evangélica se extinguisse, foram as perseguições do poder papal. Em 1208 o papa Inocêncio III proclamou uma cruzada contra os valdenses e os albigenses, na qual um milhão de homens pereceram. Desde a fundação da ordem dos jesuítas, em 1540, até 1580, foram mortas novecentas mil pessoas. A inquisição levou à morte cerca de cento e cinquenta mil pessoas em trinta anos. Nos Países Baixos, cinquenta mil pessoas foram enforcadas, decapitadas, queimadas e enterradas vivas, pelo crime de heresia, no período de trinta e oito anos, desde o edito de Carlos V contra os protestantes até a paz de Cateau Cambresis em 1559. No espaço de cinco anos e meio, 18.000 foram entregues ao carrasco, durante a administração do duque de Alba. Na verdade, o menor conhecimento da história do papado convencerá a qualquer um de que as afirmações ‘fazia guerra contra os santos’ (verso 21) e ‘magoará os santos do Altíssimo (verso 25), se aplicam estritamente a essa potência e com exatidão descrevem sua história.” (Albert Barnes, Notes on Daniel, p. 328, comentário sobre Daniel 7:25). APLCDA 130.3
Estes fatos ficam confirmados pelo testemunho de Guilherme E. Lecky, em History of the Rise of the Spirit of Rationalism in Europe, vol. 2, pp. 35, 37, onde declara: APLCDA 131.1
“Que a igreja de Roma tenha derramado mais sangue inocente que qualquer outra instituição que já existiu entre a humanidade, é algo que nenhum protestante que tenha um conhecimento completo da história porá em dúvida. Na verdade os elementos que poderiam lembrar muitas de suas perseguições escasseiam agora de tal maneira que é impossível formar-se um completo da multidão de suas vítimas. É igualmente certo que não há faculdades da imaginação que possam compreender adequadamente seus sofrimentos. [...] Estas atrocidades não foram perpretadas em breves paroxismos de um reinado de terror, nem por mão de sectários obscuros, mas infligidas por uma igreja triunfante, com toda a circunstância de solenidade e deliberação.” APLCDA 131.2
E em nada muda o assunto porque em numerosos casos as vítimas foram entregues às autoridades civis. A igreja era a que decidia em questões de heresia, entregando em seguida os ofensores o tribunal secular. Mas o poder secular naqueles dias de perseguição não era senão um instrumento nas mãos da igreja e sob seu controle, para executar suas ordens. Quando a igreja entregava seus prisioneiros aos carrascos para que os executassem, pronunciava a seguinte fórmula: “Deixamos-te e te entregamos ao braço secular e ao poder do tribunal secular; mas ao mesmo tempo rogamos ardentemente a esse tribunal que modere sua sentença para não tocar no teu sangue nem pôr tua vida em perigo.” (Miguel Geddes, “A View of the Court of Inquisition in Portugal”, Miscellaneous Tracts, vol. 1, p. 408; Ver também Filipe Limborch, The History of the Inquisition, Vol. 2, p. 289). Então, como realmente se pretendia, as infortunadas vítimas do ódio papal eram imediatamente executadas. APLCDA 131.3
O testemunho de Lapicier é muito oportuno a respeito: APLCDA 133.1
“O poder civil pode castigar unicamente o delito de incredulidade na forma e grau em que esse delito foi revelado judicialmente por pessoas eclesiásticas, versadas na doutrina da fé. Mas a igreja ao tomar para si o conhecimento do delito de incredulidade, pode por si mesma decretar a sentença de morte, embora não executá-la; mas confia em sua execução ao braço secular.” (Alejo M. Lapicier, The Stability and Progress of Dogma, p. 195). APLCDA 133.2
Mas as falsas declarações de alguns católicos de que a igreja nunca matou os dissidentes, foram plenamente negadas por um dos seus próprios escritores autorizados, o cardeal Belarmino, que nasceu na Toscana em 1542, e que, após sua morte em 1621, esteve a ponto de ser colocado entre os santos do calendário pelos grandes serviços que prestou à igreja. Esse homem, em certa ocasião, no calor de uma controvérsia, traiu-se a ponto de admitir os fatos reais do caso. Tendo Lutero dito que a igreja (querendo dizer a igreja verdadeira) jamais queimou hereges, Belarmino, entendendo-a como a igreja católica romana, respondeu: APLCDA 133.3
“Este argumento prova, não o sentimento, mas a ignorância ou impudência de Lutero; pois, visto que em número quase infinito ou foram queimados ou mortos de outra maneira, resulta que, ou Lutero não o sabia, e portanto era ignorante; ou se o sabia torna-se convicto de impudência e mentira, pois o fato de que foram frequentemente queimados hereges pela igreja, pode ser provado com muitos exemplos.” (Juan Dowling, The History of Romanism, p. 547). APLCDA 133.4
Alfredo Baurillart, reitor do Instituto Católico de Paris, referindo-se à atitude diante da heresia, observa: APLCDA 134.1
“Quando está diante da heresia, não se contenta com a persuasão; parecem-lhe insuficientes os argumentos de ordem intelectual e moral, e recorre à força, ao castigo corporal e à tortura. Cria tribunais como os da Inquisição, invoca a ajuda das leis do Estado; se necessário estimula uma cruzada, ou uma guerra religiosa, e na prática todo seu ‘horror de sangue’ culmina em sua incitação do poder secular para derramá-lo, procedimento que é quase mais odioso, porque é menos franco que o de derramá-lo ela mesma. APLCDA 134.2
“Operou assim especialmente no século XVI com relação aos protestantes. Não se conformou em reformá-los moralmente, ensinar-lhes pelo exemplo, converter o povo mediante missionários eloquentes e santos, e acendeu na Itália, nos Países Baixos, e sobretudo na Espanha, as fúnebres fogueiras da Inquisição. Na França sob Francisco I e Henrique II, na Inglaterra sob Maria Tudor, torturou os hereges, enquanto que tanto na França como na Alemanha, durante a segunda metade do século XVI, e a primeira metade do XVII, se não as incitou em realidade, pelo menos estimulou e fomentou ativamente as guerras religiosas.” (Alfredo Baurillart, The Catholic Church, the Renaissance, and Protestantism, p. 182, 183). APLCDA 134.3
Em uma carta do papa Martin V (1417-1431), encontram-se as seguintes instruções dirigidas ao rei da Polônia: APLCDA 134.4
“‘Sabei que o interesse da Santa Sede, e os de vossa coroa, vos impõe o dever de exterminar os hussitas. Lembrai que estes ímpios se atrevem a proclamar princípios de igualdade; sustentam que todos os cristãos são irmãos, e que Deus não deu a homens privilegiados o direito de governar as nações; sustentam que Cristo veio à terra para abolir a escravatura; chamam o povo a ser livre, quer dizer, a aniquilar os reis e sacerdotes. Portanto, enquanto ainda há tempo, dirigi vossas forças contra a Boêmia; matai, fazei desertos por toda parte; porque nada poderia ser mais agradável a Deus, nem mais útil à causa dos reis, que o extermínio dos hussitas.’” (L. M. Carmenin, The Public and Private History of the Popes of Rome, vol. 2, p. 116, 117). APLCDA 134.5
Tudo isto estava em harmonia com os ensinos da igreja. A heresia não devia ser tolerado, senão destruída. APLCDA 135.1
A Roma pagã perseguiu sem tréguas a igreja cristã, e calcula-se que três milhões de cristãos pereceram nos três primeiros séculos da era cristã. Entretanto, diz-se que os cristãos primitivos oravam para que subsistisse a Roma imperial pois sabiam que quando cessasse esta forma de governo, outro poder muito pior se levantaria, que literalmente, como esta profecia declara, haveria de “destruir os santos do Altíssimo”. A Roma pagã podia matar os meninos, mas perdoava as mães; mas a Roma papal matava juntamente as mães e os meninos. Nem idade, sexo ou condição isentavam de sua ira implacável. APLCDA 135.2
O chifre pequeno cuidaria em “mudar os tempos e a lei” — Que lei? Não a lei de outros governos terrenos; porque não era de estranhar que uma potência mudasse as leis de outra, sempre que conseguisse pôr esta outra potência sob seu domínio. Não era lei humana; porque o chifre pequeno tinha poder de mudar as leis humanas até onde se estendia sua jurisdição; mas os tempos e a lei aqui mencionados eram de tal natureza que esta potência podia somente pensar em mudá-los, sem ter o poder de fazer realmente a mudança. É a lei do mesmo Ser a quem pertencem os santos que são quebrantados por esse poder, a saber, a lei do Altíssimo. APLCDA 135.3
E o papado tentou fazer isso? Sim, até isso. Acrescentou o segundo mandamento do decálogo ao primeiro, tornando-os um só, e dividiu o décimo em dois, fazendo que o nono proíba cobiçar a esposa do próximo, e o décimo a propriedade do próximo, para conservar o número completo de dez. Embora todas as palavras do segundo mandamento se conservem na Bíblia católica e no catecismo romano autorizado pelo Concílio de Trento, encontram-se em ambos os lugares esmeradas explicações no sentido de que, exceto as do próprio Deus, sua confecção e emprego não ficam proibidos pelo mandamento quando se empregam somente para venerar as virtudes dos santos, e não para adorá-los como deuses, que é o que proíbe expressamente o mandamento. Aplica-se também o mesmo princípio às cinzas, aos ossos e outras relíquias dos santos, e as representações dos anjos. APLCDA 135.4
Alguns autores católicos têm muito a dizer para justificar sua igreja no uso das imagens em seu culto; e nos falam sobretudo da utilidade delas “para ensinar ao povo as grandes verdades da religião”. Mas a realidade das coisas é que no culto católico o papel que desempenham as imagens não se limita à fase didática. Tributa-lhes veneração, e o povo se inclina a elas e as honra, coisas que são principalmente vedadas, pois a proibição de fazer imagens se aplica quando destinadas a fins de culto, e não, logicamente, quando só os têm de ensino. APLCDA 138.1