A luz da Reforma Protestante destruiu muitos dos melhores argumentos em prol do domingo criados durante a Idade das Trevas – A controvérsia entre os presbiterianos e os anglicanos colocou à prova a santidade do domingo – Os presbiterianos descobriram como impor a observância do domingo recorrendo ao quarto mandamento – O modo como isso é possível – As consequências dessa descoberta extraordinária – Conclusão da história da festa do domingo HS 313.1
A luz da Reforma Protestante necessariamente dissipou muitos dos argumentos de maior peso usados para consolidar a festa do domingo durante a Idade das Trevas. O rolo que caiu do Céu, a aparição de São Pedro, o alívio das almas do purgatório e até dos condenados ao inferno, bem como muitos prodígios com terríveis consequências – nenhuma dessas coisas, nem todas elas reunidas, pareceriam capazes de ainda sustentar a santidade do dia venerável. A verdade é que, quando elas foram eliminadas, as coisas que restaram para defender a festa do domingo foram: os cânones dos concílios, os editos de reis e imperadores, os decretos dos santos doutores da igreja e, o mais importante de tudo, as ordens imperiosas do pontífice romano. No entanto, tais elementos também poderiam ser usados a favor das inúmeras festas ordenadas pela mesma grande igreja apóstata. Tal autoridade serviria para os anglicanos, que devotamente aceitam todas essas festas, pois foram ordenadas pela igreja. Mas para aqueles que reconhecem a Bíblia como a única regra de fé, a situação era diferente. Na última parte do século 16, os presbiterianos e anglicanos da Inglaterra se envolveram numa disputa que tornou esse tema uma questão preocupante. Os anglicanos requeriam que as pessoas guardassem todas as festas da igreja. Os presbiterianos observavam o domingo, mas rejeitavam todo o restante. Os anglicanos apontaram para a inconsistência dessa discriminação, uma vez que a mesma autoridade eclesiástica havia ordenado todas essas festas. Como os presbiterianos rejeitaram a autoridade da igreja papal, eles não aceitariam guardar o domingo com base na autoridade da igreja romana, principalmente porque envolveria também a observância de todos os outros dias de festa. Logo, eles precisavam escolher entre abrir mão do domingo por completo ou defender a guarda do primeiro dia usando a Bíblia. Havia, na verdade, outra escolha mais nobre a ser feita, a saber, adotar o sábado do Senhor; mas seria humilhante demais para eles se unir àqueles que conservaram essa antiga e santa instituição. O cerne dessa discussão é relatado por Hengstenberg, distinto teólogo alemão: HS 313.2
“A opinião de que o sábado foi transferido para o domingo foi formulada, pela primeira vez, em sua forma perfeita e com todas as suas consequências, em meio à controvérsia que ocorreu na Inglaterra entre anglicanos e presbiterianos. Os presbiterianos, que levaram a extremos o princípio de que toda instituição da igreja deve estar fundamentada nas Escrituras – e não admitiam que Deus dera, a esse respeito, maior liberdade à igreja do Novo Testamento, levada à maturidade pelo Espírito Santo, do que à igreja do Antigo – acusavam os anglicanos de estarem contaminados com o fermento papal e de serem supersticiosos e sujeitos a ordenanças de homens, por observarem as festas da igreja. Os anglicanos, em contrapartida, como prova de que uma maior liberdade fora concedida à igreja do Novo Testamento em questões como essas, apelaram para o fato de que até mesmo a guarda do domingo não passava de uma ordenança da igreja. Os presbiterianos se viram numa posição que os compelia, ou a abrir mão de guardar o domingo, ou a defender que uma ordenança da parte de Deus separava o domingo das outras festas. Sem o primeiro dia não poderiam ficar, pois tinham uma experiência cristã profunda o bastante para reconhecer o quanto a fraqueza da natureza humana torna necessários períodos regulares de revigoramento dedicados ao serviço de Deus. Por isso, decidiram-se pela segunda opção.”1Hengstenberg, Lord’s Day, p. 66. HS 313.3
Isso é suficiente para conhecermos o momento histórico da maravilhosa descoberta que faz com que as Escrituras apoiem a ordenança divina do domingo como o sábado cristão. A data dessa descoberta, o nome do descobridor e como ele conseguiu promover o primeiro dia da semana por meio da autoridade do quarto mandamento são expressos por Lyman Coleman, um sincero historiador favorável ao primeiro dia: HS 314.1
“A verdadeira doutrina do sábado cristão foi promulgada pela primeira vez por um dissidente inglês, o reverendo Nicholas Bound, doutor em divindade, de Norton, no condado de Suffolk. Por volta do ano 1595, ele publicou um famoso livro chamado Sabbathum Veteris et Novi Testamenti, ou A Verdadeira Doutrina do Sábado. Nesse livro, defendeu ‘que a sétima parte de nosso tempo deve ser dedicada a Deus – que os cristãos têm o dever de descansar no dia do Senhor assim como os judeus no sábado mosaico, pois o mandamento do descanso é moral e perpétuo; e que não era lícito as pessoas prosseguirem em seus estudos ou trabalhos seculares nesse dia, nem usufruir dos prazeres e das recreações permitidas nos outros dias. Esse livro se espalhou com rapidez admirável. A doutrina proposta nele provocou resposta imediata em muitos corações, e o resultado foi a mais aprazível reforma em muitas partes do reino. ‘É quase inacreditável’ – diz Fuller – ‘como essa doutrina foi atraente, em parte por causa de sua pureza, em parte pela piedade evidente das pessoas que a defendiam. Assim, o dia do Senhor, especialmente nas organizações, começou a ser guardado de forma precisa, e as pessoas se tornaram lei para si mesmas, abrindo mão de esportes que, por estatuto, ainda eram permitidos. Na verdade, muitos se alegravam pela própria abnegação nesse ponto’. A lei do dia de descanso era, de fato, um princípio religioso de que a igreja cristã vinha, há séculos, tateando no escuro à procura. Homens piedosos de todas as eras haviam sentido a necessidade de autoridade divina para a santificação do dia. A consciência deles estava mais avançada que sua razão. Na prática, eles haviam guardado o dia de descanso melhor do que os princípios deles exigiam.” HS 314.2
“Todavia, a opinião pública ainda estava hesitante quanto a essa nova doutrina a respeito do dia de descanso, muito embora, a princípio, alguns tenham se oposto ferrenhamente a ela. ‘Homens eruditos se encontravam muito divididos em suas opiniões acerca dessas doutrinas que promulgavam um tipo de descanso idêntico ao descanso sabático do Antigo Testamento. Alguns as aceitaram como verdades antigas, em conformidade com as Escrituras, há muito descontinuadas e negligenciadas, e agora oportunamente reavivadas para o aumento da piedade. Outros afirmavam que elas estavam fundamentadas em uma base errônea, mas, como tendiam ao avanço manifesto da religião, seria uma pena se opor às mesmas; deduzindo que ninguém tinha motivo justo para reclamar, visto estarem sendo enganados para o próprio bem. Mas um terceiro grupo rejeitou por completo tais proposições, como se essas doutrinas fossem um jugo judeu, para torturar o pescoço dos homens, e contrárias à liberdade dos cristãos. Alegavam que Cristo, o Senhor do sábado, havia removido o rigor do dia de descanso e permitido nele recreações lícitas, dizendo que essa nova doutrina colocava um brilho desigual no domingo, com o propósito claro de obscurecer todos os outros dias santos, menosprezando a autoridade da igreja; afirmavam, também, que essa observância estrita estava sendo estabelecida por motivos facciosos, era discriminatória e tinha o objetivo de rotular como libertinos todos aqueles que discordassem dela’. Inicialmente, porém, não se manifestou nenhuma oposição aberta aos pontos de vista do Dr. Bound. Por muitos anos não houve tentativa de resposta, e, ‘na imprensa, nenhuma pena sequer escreveu contra ele.’” HS 315.1
“Sua obra logo foi sucedida por vários outros tratados defendendo os mesmos conceitos. ‘Todos os puritanos aderiram a essa doutrina e se distinguiram por passar essa parte do tempo sagrado em devoção pública, familiar e particular’. Até o Dr. Heylyn testificou sobre a disseminação triunfante das opiniões puritanas em relação ao dia de descanso [...].” HS 315.2
“‘Essa doutrina’ – afirma ele – ‘envolvendo tão grande exibição de piedade, pelo menos na opinião das pessoas comuns e daqueles que não examinaram seus verdadeiros fundamentos, induziu muitos a adotá-la e a defendê-la. Dentro de muito pouco tempo, tornou-se o erro mais encantador e a obsessão mais popular já adotados pelo povo da Inglaterra.’”2Coleman, Ancient Christianity Exemplified, cap. 26, seção 2; Heylyn, Hist. Sab., parte 2, cap. 8, seção 7; Neal, Hist. Puritans, parte 1, cap. 8. HS 315.3
O Dr. Bound não foi, de modo algum, o inventor da teoria da sétima parte do tempo; mas pode-se dizer que ele reuniu e combinou os indícios dispersos de seus antecessores, acrescentando a esses alguma coisa de elaboração própria. Seus motivos para afirmar que o domingo corresponde ao sábado do quarto mandamento são estes: HS 315.4
“Aquilo que é natural, isto é, que todo sétimo dia deve ser santificado ao Senhor, ainda permanece. Aquilo que é indiscutível, isto é, que o dia que foi o sétimo dia desde a criação deveria ser o sábado, ou dia de descanso, agora está mudado na igreja de Deus.”3Nicholas Bound, Sabbathum Veteris et Novi Testamenti; or, the True Doctrine of the Sabbath, segunda edição, Londres, 1606, p. 51. HS 315.5
Ele diz que o significado da declaração “O sétimo dia é o sábado do Senhor teu Deus” é este: HS 316.1
“É preciso haver um [dia] dentre sete, e não [um] dentre oito.”4Idem, p. 66. HS 316.2
Mas o ponto central de toda a teoria é a declaração de que o sétimo dia do mandamento correspondia a um “gênero”, isto é, a uma classe de sétimo dia que abrangia várias espécies de sétimos dias, no mínimo duas. Assim, ele afirma: HS 316.3
“Então Ele fez o sétimo dia para representar um gênero neste mandamento e para ser perpétuo; e deve-se incluir nele, em virtude do mandamento, duas espécies ou tipos: o sábado dos judeus e o dos gentios, o da lei e o do evangelho. Logo, ambos estão contidos no mandamento, assim como um gênero engloba ambas as suas espécies.”5True Doc. of the Sab., p. 71. HS 316.4
Ele impõe o primeiro dia com base no quarto mandamento da seguinte maneira: HS 316.5
“Assim, não temos no evangelho um novo mandamento para o sábado [ou dia de descanso], diferente do que estava na lei, mas, sim, um tempo diferente designado, isto é, não o sétimo dia da criação, mas, sim, o dia da ressurreição de Cristo e o sétimo a partir dele; e ambos, em diversos momentos, abrangidos pelo quarto mandamento.”6Idem, p. 72. HS 316.6
Ele quer dizer que o quarto mandamento exige a guarda do sétimo dia desde a criação até a ressurreição de Cristo, e, desde esse acontecimento, requer a observância de um sétimo dia diferente, isto é, o sétimo dia a partir da ressurreição de Cristo. Aqui vemos a perversa sagacidade pela qual os homens conseguem escapar da lei de Deus, dando, ao mesmo tempo, a impressão de que a estão observando fielmente. HS 316.7
Essa foi a origem da teoria da sétima parte do tempo, segundo a qual o “sétimo dia” é removido do quarto mandamento e “um dia em sete” é sutilmente introduzido em seu lugar – uma doutrina elaborada justamente no período em que nada mais seria capaz de salvar o venerável dia do sol. Com o auxílio dessa teoria, o domingo “papal e pagão” conseguiu ousadamente se revestir do quarto mandamento, assumindo o caráter de uma instituição divina, exigindo a obediência de todos os cristãos bíblicos. Agora o dia podia deixar de lado todas as outras fraudes dos quais sua existência dependia e passar a embasar sua autoridade apenas nesse argumento. Na época de Constantino, o domingo ascendeu ao trono do império romano e, durante todo o período da Idade das Trevas, manteve sua supremacia por meio da cadeira de São Pedro. Agora, porém, ele fora elevado ao trono do Altíssimo. Assim, um dia que Deus “não ordenou, nem falou, nem passou por Sua mente” foi imposto sobre toda a humanidade com toda a autoridade de Sua santa lei. O efeito imediato da obra do Dr. Bound sobre a controvérsia que se criou é assim descrito por uma testemunha ocular anglicana, o Dr. Heylyn: HS 316.8
“Ao inculcar ao povo essas novas especulações sabáticas [acerca do domingo], ensinando que somente esse dia ‘fora ordenado por Deus e todo o restante das festas observadas pela igreja da Inglaterra era um remanescente da adoração do eu na igreja de Roma’, os outros dias santos estabelecidos nesta igreja foram tão astutamente abalados que, até hoje, não se recuperaram totalmente do golpe recebido. Tal situação não foi um efeito secundário ou além do propósito deles, mas algo assim pretendido desde o princípio.”7Hist. Sab., parte 2, cap. 8, seção 8. HS 316.9
Em um capítulo anterior, chamamos atenção para o fato de que o domingo só pode ser mantido como instituição divina se adotarmos a regra de fé reconhecida pela igreja católica, ou seja, a Bíblia juntamente com as tradições da igreja que lhe são adicionadas. Vimos que, no século 16, os presbiterianos da Inglaterra tiveram que decidir entre abrir mão do domingo como festa da igreja ou mantê-lo como uma instituição divina ordenada pela Bíblia. Eles escolheram a segunda opção. Todavia, embora aparentassem evitar a acusação de observar uma festa católica, alegando provar que o domingo fosse uma instituição bíblica, a natureza absolutamente insatisfatória das várias inferências retiradas das Escrituras a fim de apoiar esse dia os levou a recorrer às tradições da igreja, acrescentando-as a suas supostas referências bíblicas em favor do domingo. Seria melhor guardar o domingo reconhecendo francamente se tratar de uma festa da igreja católica, não ordenada pela Bíblia, do que professar observá-lo como instituição bíblica e então provar isso adotando a regra de fé dos católicos romanos. Jouanes Peronne, proeminente teólogo católico italiano, em uma importante obra doutrinária, intitulada Theological Lessons [Lições Teológicas], faz uma declaração muito impressionante a respeito do reconhecimento da tradição por parte dos protestantes que guardam o domingo. No capítulo “Concerning the Necessity and Existence of Tradition” [Da Necessidade e Existência da Tradição], ele propõe ser necessário aceitar doutrinas que só podem ser provadas com base na tradição e que não podem ser sustentadas pelas sagradas Escrituras. Ele então afirma: HS 317.1
“Na verdade, se tradições de tal caráter forem rejeitadas, não é possível que várias doutrinas que os protestantes mantiveram conosco desde que se separaram da igreja católica, sejam, de algum modo, firmadas. Esse fato fica estabelecido sem qualquer sombra de dúvida; pois eles defendem, junto conosco, a validade de batismos administrados por hereges ou infiéis, a validade do batismo infantil, e também a verdadeira forma de batismo [aspersão]. Eles creem também que a lei de se abster do sangue e de animais sufocados não está em vigor; e também sobre a substituição do sábado pelo dia do Senhor, bem como as coisas que já mencionei e diversas outras.”8Praelectiones Theologicae, vol. 1, parte 2, seção 2, cap. 1, p. 194. “Propositio. Praeter sacram Scripturam admitti necessario debent Traditiones divinæ dogmaticæ ab illa prorsus distinctæ.”
“Non posse praeterea, rejectis ejusmodi traditionibus, plura dogmata, quæ nobiscum retinuerunt protestantes cum ab Ecclesia catholica recesserunt, ullo modo adstruis, res est citra comnis dubitationis aleam posita. Etenim ipsi nobiscum rotinuerunt valorem baptismi ab haereticis aut intidelibus administrati, valorem item paedobaptismi, germanam baptismi formam, cessationem legis de abstinentia a sanguine et suffocato, de die dominico Sabbatis suffecto, praeter ea quæ superius commemoravimus aliaque haud pauca.” HS 317.2
A teoria do Dr. Bound sobre a sétima parte do tempo tem encontrado aceitação geral em todas as igrejas que surgiram da igreja de Roma. Cotton Mather declarou com muita propriedade: HS 318.1
“Todas as igrejas reformadas, fugindo de Roma, levaram consigo algo de Roma, algumas mais, outras menos.9Backus, Hist. of the Baptists in New England, p. 63, ed. 1777. HS 318.2
Um tesouro sagrado que todas elas receberam da venerável mãe das meretrizes foi a antiga festa do sol. Ela havia retirado de sua comunhão o sábado do Senhor; e, tendo adotado o venerável dia do sol, transformou-o no dia do Senhor da igreja cristã. Os reformados, deixando sua comunhão e carregando consigo a antiga festa, viram-se agora em condições de justificar sua observância como se fosse, na verdade, o sábado do Senhor! Assim como o manto sem costura de Jesus, o Senhor do sábado, foi arrancado Dele antes que O pregassem na cruz, o quarto mandamento, da mesma forma, foi arrancado do dia de descanso do Senhor, ao redor do qual ele foi colocado pelo grande Legislador, e entregue a esse “dia do Senhor” criado pelo papa; e esse ladrão Barrabás, vestido com o quarto mandamento que foi furtado, tem conseguido, desde aquela época até hoje, exigir do mundo, e com sucesso surpreendente, a sua observância como se fosse o sábado divinamente designado pelo Deus altíssimo. Aqui encerramos a história da festa do domingo, agora plenamente transformada no sábado cristão. Uma rápida apresentação da história dos guardadores do sábado ingleses e norte-americanos concluirá esta obra. HS 318.3