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    Capítulo 11

    Quem era o estranho. A lista negra. Uma pá de sal. O cume do Pico. O fim da viagem. Visitando minha família. Viagem à América do Sul. Ventos Alísios. Os peixes. Rio de Janeiro. Situação desesperadora. Montevidéu. Voltando para o Norte. Ferindo uma baleia. A decisão de nunca mais tomar bebida alcoólica. Chegada a Alexandria. Preparativos para mais uma viagem. Visitando minha família. Escapando de uma carruagem. Velejando para a América do Sul. Um peixe peculiar. Chegada ao Rio de Janeiro. Velejando pelo rio La Plata. Desfazendo da carga em Buenos Aires. Um anfitrião católico.AJB 129.1

    Aquele homem descrito no final do capítulo anterior era o cabo ou guarda do navio Rodney. Ele ficava de sentinela de frente para mim, e era o capitão daqueles pobres homens colocados na “lista negra”, sujeitos a executar o trabalho de limpeza do navio, bem como o de polir o latão, o cobre e o ferro sempre que eram convocados. Ele parecia bem satisfeito em honrar o rei naquela função. O chicote de vime que ele segurava nas mãos parecia ser o mesmo que ele usava para açoitar alguns daqueles homens. Já narrei parcialmente antes a forma como o primeiro tenente (Campbell) ameaçou me açoitar sem misericórdia se eu não me movesse para me adequar às suas ordens, onde quer que eu estivesse, pois eu tinha tentado fugir a nado do St. Salvadore del Mondo alguns dias antes de ser mandado a bordo do Rodney. Depois de me vigiar por mais de um ano para cumprir sua ameaça, alguém lhe informou que havia um par de calças entre o topo do mastro principal e a parte inferior do mastaréu. Eu reconheci que as calças eram minhas, razão pela qual ele me manteve na “lista negra” por seis meses.AJB 129.2

    Naquela época tenebrosa de servidão na Marinha Britânica, tínhamos cerca de duas horas por semana para lavarmos as roupas com água salgada; às vezes com alguns litros de água doce, se pudéssemos fazê-lo antes das duas horas acabarem. E nenhuma peça de roupa devia ser secada fora desse horário, com exceção das nossas redes de dormir, quando nos mandavam esfregá-las. Toda manhã, no verão, éramos obrigados a nos apresentar com as camisas de marinheiro e as calças bem limpas: se eles dissessem que não estavam limpas, o castigo era a “lista negra”. Ora, se o intendente naval tivesse me fornecido as roupas que eram absolutamente necessárias, eu não teria ficado tão preocupado como fiquei, a ponto de não saber o que fazer para lavá-las, a fim de evitar a dita lista negra. Diversas vezes eu falei para o oficial da nossa divisão o quanto eu precisava de roupas em comparação com outros marinheiros, e lhe implorei que me providenciasse mais roupas para que eu pudesse me apresentar para revista. Eu não consegui o que queria, e como minhas velhas roupas estavam muito gastas e não apropriadas para a vistoria, sofri como contei. Nunca soube de qualquer outra razão para que eles me obrigassem, por assim dizer, a “fazer casas sem restolho e palhas” – como os israelitas sob o jugo egípcio –, a não ser, é claro, a minha primeira ofensa de tentar fugir do serviço forçado deles. Era um ganho para o governo nos oferecer roupas, pois elas eram cobradas a um preço definido pelo governo, e o valor descontado do nosso mísero pagamento. Fiquei sabendo que não era por eu não cumprir meu dever, como acontecia com muitos outros marinheiros, pois o mesmo senhor Campbell me promoveu mais de uma vez a posições superiores, e eu era informado que meu salário era proporcionalmente aumentado.AJB 129.3

    Aquele cabo nunca usou o seu chicote contra mim, mas a maneira como ele me “favorecia” naquela época era me tirar da minha rede, se eu tivesse a sorte de me deitar nela depois de fazer a minha obrigação da meia-noite no convés, e me colocar para trabalhar com o grupo da “lista negra” até que fosse a hora de eu assumir outra vez o meu posto de trabalho no convés à meia-noite do dia seguinte. Dessa forma, eu ficava sem condições de dormir até que terminasse meu período noturno de vigia. Dessa forma, às vezes eu tinha o “privilégio” de dormir umas cinco horas, mas, com mais frequência, nada mais do que quatro horas de sono em 24 horas! Eu sabia muito bem que, se ele quisesse, ele poderia ter sido mais humano comigo nessa situação. De qualquer forma, nós obedecíamos, pois sabíamos que se ele informasse que éramos indolentes e desobedientes, as nossas tarefas se tornariam ainda mais pesadas e degradantes. E pensar que tudo isso só aconteceu porque tentei secar um par de calças para que meu nome pudesse aparecer na “lista branca”! Pois bem, sem satisfazer a curiosidade desse cabo, fiquei sabendo por meio dele do paradeiro de muitos dos oficiais e tripulantes, por muitos dos quais eu tinha grande simpatia.AJB 130.1

    Depois dessa conversa, empreguei dois irlandeses robustos como estivadores, para retirarem o sal das barcaças e colocá-lo dentro de um buraco na lateral do navio, chamado de “porta de lastro”. Enquanto prosseguiam com o trabalho, vi os dois irlandeses inclinados sobre as pás, e então perguntei:AJB 131.1

    – Qual é o problema?AJB 131.2

    – O problema, senhor, é que os seus homens não tiram e jogam sal para dentro do navio na mesma velocidade que nós.AJB 131.3

    Havia uns sete ou oito homens dos nossos tirando o sal das barcaças e o colocando no navio. Então lhes perguntei:AJB 131.4

    – Qual é o problema, homens? Por acaso não são capazes de tirar o sal tão rapidamente quanto aqueles dois ali o guardam?AJB 131.5

    Eles responderam que não. Um dos irlandeses que estava escutando na “porta de lastro”, disse:AJB 131.6

    – Vocês estão admirados com nossa rapidez? Mas quero dizer que se comêssemos a mesma quantidade de carne que vocês, faríamos o trabalho mais rápido ainda.AJB 131.7

    – Por quê? – perguntou um dos meus marinheiros, que parecia preocupado com a afirmação. – Vocês não têm carne para comer?AJB 131.8

    – Não! Não comemos carne alguma faz duas semanas.AJB 131.9

    – Mas o que vocês têm comido, então?AJB 131.10

    – Batatas, é claro!AJB 131.11

    Meus marinheiros, até então, estavam comendo todas as variedades de comida que as boas pensões ofereciam em Liverpool. Muitos são da opinião de que a carne dá força superior para a classe trabalhadora; naquela ocasião, no entanto, isso se provou o contrário.AJB 131.12

    Devido aos ventos ocidentais que prevaleciam em nossa viagem de volta para casa, chegamos aos arredores das Ilhas Ocidentais. Ali avistamos a enorme Montanha do Pico que se misturava com as nuvens. Ao meio-dia, pudemos observar que estávamos a 130 quilômetros ao norte da montanha. Se tivéssemos navegado 90 quilômetros em direção a ela, provavelmente teríamos alcançado o pé da montanha.AJB 131.13

    Chegamos com segurança a Alexandria, Distrito de Columbia, no outono de 1820. Como o navio não recebeu nenhum novo carregamento, voltei para a minha família na Nova Inglaterra depois de uma ausência de mais ou menos 16 meses.AJB 132.1

    No início da primavera de 1821, naveguei outra vez para Alexandria, novamente no comando do navio Talbot, agora rumo à América do Sul. Dessa vez, a nossa carga era de farinha. Eu ocupava agora uma função de maior responsabilidade do que antes, pois toda a carga e o navio haviam sido confiados a mim a fim de que eu cuidasse das vendas e da prestação de contas quanto aos lucros. E é claro que meus rendimentos pelos serviços prestados nessa viagem eram mais que o dobro. Meu imediato era meu irmão F. Zarpamos então para o Rio Janeiro, no Brasil. Com um vento favorável, passadas algumas horas após a nossa partida de Alexandria, já estávamos passando pela propriedade do ex-presidente George Washington, em Mount Vernon. Os marinheiros disseram que era comum entre alguns comandantes abaixarem as velas principais em sinal de respeito ao passarem pela silenciosa sepultura do ex-presidente. A cerca de 240 quilômetros de Washington, já havíamos passado a paisagem variada e agradável de Potomac, adentrando a Baía de Chesapeake.AJB 132.2

    Tínhamos um timoneiro hábil e experiente; porém, a sua sede por bebida alcoólica fazia com que o comissário de bordo tivesse que lhe trazer gin e conhaque com muita frequência, o que nos atemorizou quanto à segurança do navio. Dessa forma, julgamos necessário determinarmos uma quantidade diária que ele pudesse beber: apenas três copos até que ele levasse o navio para fora dos cabos da Virgínia.AJB 132.3

    Dos cabos da Virgínia ajustamos nosso curso para o sudeste, rumo às ilhas de Cabo Verde – como era de costume – para nos encontrarmos com os ventos alísios do nordeste a fim de que eles nos levassem para longe da projeção de terra, ou promontório, do Brasil, na América do Sul. Seguindo esse curso, desceríamos até a linha do Equador, onde encontraríamos os ventos alísios vindo mais da parte sul. Nesse trajeto descendente por meio desses ventos do nordeste, não há quem não fique pasmo com o rastro brilhante e espumante que o navio deixa durante a escuridão da noite. A luz que irradia desse caminho no mar é tão brilhante que eu já fui tentado a ler com essa luz em plena meia-noite segurando o meu livro aberto de frente para aquele trajeto resplandecente. Se não fosse pelo contínuo desmoronamento do mar para preencher as enormes fendas embaixo da popa do navio, o que faz com que as letras de um livro fiquem embaralhadas, qualquer um poderia ler uma publicação com impressão comum na noite mais escura. Alguém que já examinou esse estranho fenômeno disse que ele acontece porque o mar, especialmente naquele lugar, é repleto de animais, ou melhor, de pequenos peixes brilhantes chamados animaculae. Sem dúvida eles servem de comida para peixes maiores. Mais ao sul, nós nos deparamos com uma espécie de peixe fino, de 30 centímetros de comprimento, com um tipo de barbatana que parecia pequenas asas. De repente, um cardume enorme, por vezes, saltava por sobre a superfície do mar, ou ficava rodeando, e voltava em seguida para dentro da água. A causa daquilo era que, às vezes, um golfinho com todas as cores do arco-íris movia-se rapidamente como um faixo de luz em busca de sua presa que havia escapado de seu alcance, saltando por cima da superfície da água e tomando um curso contrário. À noite o cardume frequentemente “voava” para dentro do navio, proporcionando um café da manhã agradável aos marinheiros.AJB 132.4

    Nossa admiração foi grande ao chegarmos ao porto espaçoso da grande cidade do Rio de Janeiro. Avistamos as montanhas antigas, acidentadas e cobertas de nuvens, especialmente o imponente Pão de Açúcar, que forma um lado da entrada do porto. Boa parte da carga foi descarregada ali e seguimos para Montevidéu, na entrada do rio La Plata. Alguns dias antes de chegarmos a Montevidéu, enfrentamos uma tempestade e um vendaval terríveis. Terminada a tempestade, estávamos à deriva, indo em direção a uma parte inabitada da costa, cheia de rochedos. O vento cessou, a calmaria tomou lugar e o mar e a corrente nos levavam em direção aos rochedos. Nosso único recurso disponível foi soltar as cordas e lançarmos as âncoras no mar. Felizmente, elas conseguiram segurar o navio. Com meu binóculo, subi até o topo do mastro para examinar a costa rochosa. Depois de um tempo, escolhi o lugar para atracarmos, caso fosse possível e seguro puxar as âncoras, virarmos o navio rumo à praia e deixá-lo ser levado como uma gangorra pelas ondas até chegarmos à costa (isso se não fôssemos esmagados pela rebentação). Portanto, depois de decidirmos, fizemos todas as preparações necessárias, caso o vento viesse outra vez à noite, para cortarmos as nossas cordas e fazermos um esforço desesperado para nos afastarmos dos rochedos a sota-vento. Depois de mais ou menos 30 horas de ansiosa apreensão, o vento começou a subir novamente do mar. Levantamos as âncoras e, antes da meia-noite, consideramos, enfim, que estávamos fora do perigo daquela região.AJB 133.1

    Logo após esse incidente, chegamos a Montevidéu e, descarregada a carga, voltamos para o Rio de Janeiro. Investi nossos fundos em couro cru e café; e viajamos para a Bahia, ou melhor, Salvador. No Arquipélago de Abrolhos nos encontramos com o navio Balena, cujo capitão era Gardiner, de New Bedford. Eles estavam degustando uma baleia cachalote que haviam pescado com arpão no dia anterior. O capitão Gardiner havia, recentemente, saído de New Bedford rumo a uma viagem de caça às baleias no Oceano Pacífico.AJB 134.1

    Depois de acomodarem aqueles monstros enormes do oceano na lateral do navio, eles cortavam a cabeça do animal com pás afiadas afixadas em longas varas, e com longas conchas extraíam o melhor e mais puro óleo, chamado de “substância da cabeça”. Às vezes, cada cabeça rendia 20 barris desse produto caro, vendido, muitas vezes, por 50 dólares o barril. Em seguida, com grandes ganchos de ferro enfiados no corpo do animal e presos a um guincho enorme na extremidade do molinete, os marinheiros içavam e viravam a baleia enquanto os homens com pás afiadas cortavam tiras de gordura da baleia. Assim, toda a gordura era tirada e colocada a bordo do navio à medida que o enorme corpo era revirado pelo gancho, restando apenas a carcaça do animal, que era deixada à deriva e logo devorada por tubarões.AJB 134.2

    A gordura era picada em pedaços pequenos, jogada em grandes caldeirões de ferro e fervida. Quando o refugo da fervura ficava marrom, este era jogado debaixo do caldeirão para servir de combustível no processo de retirada da pura gordura. O óleo quente era então colocado em barris, resfriado, conservado e guardado para a venda. Enquanto esse trabalho estava em progresso, o cozinheiro e comissários de bordo (se o capitão achasse necessário) deviam trabalhar nos barris de farinha, enrolando quilos de massa, que logo eram fritos no óleo escaldante como guloseimas para todos a bordo. Os marinheiros chamavam isso de ter uma “boa refeição de gulodices”. O óleo quente era tão doce quanto o toicinho novo de porco.AJB 134.3

    O capitão Gardner me atualizou a respeito das notícias mais recentes de casa, e deixou comigo cartas para que eu levasse aos Estados Unidos. Dentro de alguns dias, cheguei à Bahia e, dali, naveguei de volta para Alexandria, D.C.AJB 135.1

    Durante a viagem de volta para casa, fiquei seriamente convencido quanto a um erro notório que eu havia cometido ao me permitir, como fizera por mais de um ano (depois de sempre ter praticado a abstinência), beber bebida destilada. Tomei essa consciência porque fiquei muito desgostoso com os efeitos desmoralizantes e degradantes da bebida, e bem convencido de que os marinheiros que bebiam estavam se arruinando e caminhando a passos largos para o cemitério. Apesar de já ter tomado medidas para me proteger do caminho dos bêbados, não me permitindo, sob hipótese alguma, beber mais que um copo de bebida alcoólica por dia – medida esta a que me aderi fielmente –, ainda assim o forte desejo por aquele copo, ao se aproximar a hora do jantar – a hora que costumava tomá-lo – era mais forte do que meu apetite por alimento. Isso me deixou alarmado. Refletindo sobre esse assunto, decidi que nunca mais beberia um copo de bebida alcoólica enquanto vivesse. Hoje, já faz 46 anos desde que tomei essa decisão tão importante em minha trajetória de vida, e não me lembro de ter violado esse voto nenhuma vez, a não ser para fins medicinais. Essa decisão deu novas energias para todo o meu ser e fez com que eu me sentisse um homem verdadeiramente livre. Todavia, naquela época, era considerada questão de educação beber vinho em reuniões sociais.AJB 135.2

    A viagem da Bahia até os cabos da Virgínia foi agradável. Chegamos a Alexandria por volta da última semana de novembro de 1821. Uma carta da minha esposa me esperava ali. Nela, minha esposa anunciava a morte de nosso único filho. O Sr. Gardner, o proprietário do Talbot, estava tão satisfeito com o rendimento da viagem que comprou um veleiro de alta velocidade e uma carga bem variada em Baltimore para que eu pudesse prosseguir em uma viagem de comércio rumo ao Oceano Pacífico enquanto o Talbot permaneceria em Alexandria, pois precisava de alguns reparos.AJB 135.3

    Enquanto os preparativos estavam sendo feitos para a nossa viagem, comprei uma passagem na carruagem-correio de Baltimore para Massachusetts para visitar a minha família. Saímos de Baltimore na quarta-feira e chegamos a Fairhaven, Massachusetts, no domingo à noite, depois de um cansativo percurso de mais de quatro dias, parando apenas para fazermos uma troca de cavalos e uma refeição apressada até chegarmos a Rhode Island. Enquanto passávamos por Connecticut, à noite, os cavalos se assustaram e desviaram para a beira de um precipício, deixando a carruagem descontrolada. Um homem muito pesado, sentado no banco comigo, se agarrou no cinto até que este cedeu. O homem caiu em cima de mim, me esmagando na lateral do transporte, o que fez com que eu caísse no chão congelado. Se o cocheiro não tivesse saltado da carruagem para a beira do precipício e controlado os cavalos, teríamos morrido. Demorou algumas semanas até que me recuperasse, mas prossegui a viagem até chegar em casa.AJB 136.1

    Depois de ficar com minha família algumas semanas, retornei para Baltimore. Nessa viagem de volta, à medida que adentrávamos no território da Filadélfia por volta da meia-noite em uma carruagem de inverno fechada, com sete passageiros, e passávamos por um vale profundo, o cinto do banco dos dois cocheiros cedeu e eles caíram embaixo das rodas, fato até então desconhecido para nós, que estávamos confortavelmente agasalhados no lado de dentro da carruagem. Perguntei então por que os cavalos estavam indo tão rápido. Um dos passageiros disse:AJB 136.2

    – Deixe que vão! Eu gosto de velocidade.AJB 136.3

    No entanto, eu não estava muito satisfeito. Tirei a coberta, abri a porta e gritei para o cocheiro; mas como não recebi nenhuma resposta, e percebendo que os cavalos desciam a toda velocidade a Rua Terceira, me curvei para frente a fim de falar com os cocheiros e descobri que eles não estavam mais lá. A carruagem estava sendo puxada a esmo pelos cavalos. Abaixei a escada e pisei nela, a uns 30 centímetros do chão, esperando uma oportunidade de saltar em um monte de neve, mas os cavalos ainda continuavam na estrada onde a neve estava gasta. Os passageiros gritavam para que eu saltasse, já que queriam fazer o mesmo antes que a carruagem fosse despedaçada.AJB 136.4

    Finalmente me inclinei para frente com todas as minhas forças e saltei. Só vi as rodas traseiras passarem ao lado do meu corpo. Minha cabeça foi arremessada contra o chão, e não sei quantas vezes eu rolei antes de parar. Descobri então que tinha um corte em cima da cabeça, de onde escorria muito sangue. Eu conseguia ouvir a carruagem chocalhar furiosamente rua abaixo. Com a ajuda da luz da lua, encontrei meu chapéu e fui atrás da carruagem. Logo alcancei o Sr. G., filho do meu chefe, que viajava comigo vindo de Boston. Com medo, ele havia pulado também da carruagem e caído em cheio no chão, ficando gravemente ferido.AJB 137.1

    Depois de deixá-lo sob os cuidados de um médico, comecei a ter informações sobre o que havia acontecido com os outros cinco que viajavam conosco e com nossas bagagens. Encontrei os cavalos com um dos cocheiros, retornando com a carruagem quebrada na altura das rodas. Outros quatro passageiros haviam seguido o nosso exemplo e pulado. Eles não estavam muito feridos.AJB 137.2

    O último que encontrei era um homem muito pesado, e ele havia saltado na areia assim que a carruagem saíra da rua pavimentada, e estava ileso. Os cavalos correram em direção ao rio, e repentinamente mudaram de rumo para se desviar de uma pequena elevação de terra, fazendo com que a lateral e as rodas da carruagem se chocassem violentamente naquele morro. Aquela batida teria, sem dúvida, matado qualquer passageiro que tivesse se arriscado a ficar na carruagem. Pela manhã soubemos que os cocheiros haviam conseguido escapar com vida, apesar de a carruagem ter esmagado os dedos de um e tirado o chapéu da cabeça do outro. Poucos dias depois pudemos enfim seguir viagem e chegamos à Baltimore.AJB 137.3

    Logo que voltei à Baltimore, fiquei no comando do brigue Chatsworth, como responsável por um carregamento bem variado e adequado para o tipo de viagem que tínhamos em mente. Eu tinha total liberdade para negociar, contanto que o negócio fosse rentável. Tínhamos à nossa disposição armas de fogo e munição para nos defendermos de possíveis ataques de piratas ou até mesmo de uma rebelião. Mais uma vez o imediato do navio foi o meu irmão F. Partimos de Baltimore no dia 22 de janeiro de 1822 rumo à América do Sul e ao Oceano Pacífico. Poucas semanas depois, cruzamos as Ilhas de Cabo Verde, seguindo o curso em direção ao Oceano Antártico.AJB 137.4

    Nas proximidades da linha do equador, com o clima moderado e em meio a algumas calmarias, nos deparamos com uma espécie singular de peixe (mais numerosa do que em latitudes maiores), provida de algo parecido com remos e velas. Naturalistas, por vezes, o chamam de “Nautilus”, uma espécie de marisco. Com seus grandes e longos tentáculos que funcionam como remos e os firmam na água, eles sobem à superfície da água e inflam, chegando de dez a 15 centímetros de comprimento, e aproximadamente o mesmo de altura, parecendo um pequeno navio seguindo seu curso com todas as velas brancas. Eles nadam ao redor do navio e afundam de repente como se tivessem sido desnorteados por uma tempestade de vento. Em seguida, voltam à superfície outra vez e deslizam à frente com sua velocidade habitual, como se quisessem mostrar aos marinheiros que também são navios, e com velocidade superior. Mas assim que o vento surge, eles perdem a coragem, recolhem as “velas” e se escondem debaixo d’água de novo, até que o vento se acalme outra vez. Os marinheiros chamam esses peixes de “guerreiros portugueses”.AJB 138.1

    Ancoramos no porto do Rio de Janeiro por volta do dia 20 de março. Como não encontramos compradores para todo o carregamento, velejamos outra vez para o rio La Plata. Ao chegarmos à embocadura norte do rio, no silêncio da noite, apesar de estarmos cerca de quase cinco quilômetros da margem, podíamos ouvir os “cachorros do mar”, ou seja, as focas, gritando da beira da praia, para onde haviam ido para seus momentos de recreação. Na manhã seguinte ancoramos a certa distância de Montevidéu a fim de perguntarmos se tinham interesse por nossas mercadorias, e logo descobrimos que queriam muito a nossa carga em Buenos Aires. Rumando para Buenos Aires à noite, por um canal estreito e novo para nós e sem um piloto, atingimos o fundo, e fomos obrigados a aliviar a nossa embarcação, jogando parte da carga no mar antes de o navio voltar a flutuar no canal outra vez. Quando chegamos à cidade de Buenos Aires, vendemos o nosso carregamento imediatamente com grande margem de lucro.AJB 138.2

    Enquanto estávamos em Buenos Aires, cidade líder em navegação, um vento do norte arrastou toda a água do rio por muitas léguas. Foi algo excepcional vermos os oficiais e tripulações dos navios passarem de um navio para outro pelo fundo seco e duro do rio, onde, no dia anterior, seus navios estavam flutuando e balançando a quatro metros e meio de profundidade. Porém, era perigoso transitar muitos quilômetros adiante nessas circunstâncias, pois se o vento cessasse ou se houvesse uma mudança de direção dele na embocadura do rio, a água voltaria impetuosamente, como o barulho de uma cachoeira, e faria com que os navios flutuassem outra vez rapidamente e voltassem ao seu balanço normal acima das âncoras.AJB 139.1

    Em Buenos Aires, até a supressão da Inquisição em 1820, nenhuma outra religião era tolerada exceto a católica romana. Era algo singular de se notar (como tivemos várias oportunidades de fazê-lo) como a grande maioria dos habitantes considerava as cerimônias de seus sacerdotes com supersticiosa admiração, especialmente a administração da hóstia aos moribundos.AJB 139.2

    O toque de um pequeno sino na rua anunciava a vinda da hóstia, geralmente na seguinte ordem: pouco à frente do sacerdote vinha um menino negro fazendo o som de “ding-dong” com aquele pequeno sino; em seguida, às vezes vinham dois soldados, um de cada lado do sacerdote, com as espingardas nos ombros e com baionetas afixadas para fazer com que a ordem da igreja fosse cumprida e todo joelho se dobrasse ao passar da hóstia. Se não se dobrassem, as pessoas teriam de se submeter à mira da baioneta dos soldados.AJB 139.3

    Disseram-me que um inglês, recusando-se a ajoelhar-se diante da hóstia que passava, foi esfaqueado por um soldado. As pessoas montadas em cavalo deveriam descer e se ajoelhar com os homens, mulheres e crianças nas ruas, bem como as pessoas nas soleiras das suas casas, mercearias e farmácias, enquanto o sacerdote passava com a hóstia e o vinho. Nós, os estrangeiros, podíamos ficar em qualquer lugar testemunhando a chegada da hóstia e mudar de lugar antes que ela nos alcançasse.AJB 139.4

    Cerca de 50 quilômetros abaixo da cidade de Buenos Aires, há um bom porto para despacho chamado Ensenado. Naquele lugar, reparamos o Chatsworth e nos preparamos para uma viagem de inverno até o Cabo Horn.AJB 139.5

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