A casa da moeda. Cunhagem. Igrejas católicas e as festividades. Como se lembrar de Deus. Inquisição espanhola. Viagem a Trujillo. O Chatsworth é vendido. Métodos de contrabando. Cavalos espanhóis. Método indiano de contrabando. O Chatsworth é entregue. Viagem ao Callao. Problemas com o capitão. O banquete. AJB 149.1
Naquela viagem tivemos a oportunidade de conhecer a casa da moeda dos peruanos e ver o processo de fabricação da moeda deles. No centro da sala de cunhagem, havia um fosso com cerca de dois metros de profundidade e um e meio de diâmetro. No centro do fundo daquele fosso estava a base na qual ficava o pivô central inferior, onde o dinheiro era colocado para ser cunhado. A máquina de cunhagem ficava no topo, como um cabrestante comum, com buracos feitos por onde passavam duas alavancas longas ou barras de mais de seis metros de comprimento, e havia um homem em cada extremidade da barra. A parte superior do cabrestante afunilava-se a um ponto no qual a cunhagem era afixada. AJB 149.2
Um homem ficava no fosso com meio saco de moedas de prata para serem cunhadas em moedas de 50 ou 25 centavos, conforme era o caso. Ele segurava cada moeda entre o seu polegar e o dedo indicador no pivô central inferior. O cunho ficava na parte debaixo do cabrestante, apenas alguns centímetros acima dos dedos do homem. Os homens pegavam a extremidade das barras do cabrestante e o giravam até a metade; o objeto então cunhava a prata com um estampido e, num salto, voava de volta para o seu lugar. Ali em cima os quatro homens seguravam as barras novamente, giravam novamente o cabrestante, o enviavam de volta, e mais uma moeda era cunhada. Dessa maneira eles cunhavam várias moedas por minuto. Disseram-nos que o cunho descia cada vez com uma força equivalente a sete toneladas. AJB 149.3
A máquina, àquela altura, estava preparada para cunhar “sixpences” – uma moeda britânica da época que valia seis centavos. Eu fiquei observando o homem do fosso, pois queria ver como ele conseguia segurar aquelas moedas tão pequenas a milímetros do cunho que descia com sete toneladas várias vezes por minuto, ou tantas vezes quanto a habilidade do homem lhe permitia colocar as moedas ainda não cunhadas sob o cunho. O homem parecia bem à vontade nesse ofício, e realizava o trabalho com a mesma facilidade que uma costureira conserta roupas. “Ele está acostumado com o trabalho”, alguém me disse; mas, e se ele tivesse perdido algum polegar ou outro dedo antes de se acostumar com o trabalho? E aí? O mistério para mim era como um homem poderia se acostumar com um ofício tão perigoso como aquele sem ter os dedos prensados. AJB 149.4
Aqueles peruanos eram católicos romanos. Dentro dos muros da cidade deles havia cerca de 60 igrejas católicas, quase todas de pedra e tijolo. Muitas delas eram construções muito caras que se estendiam por vários acres de terra, com belos jardins nos canteiros centrais e com tantos aposentos que os estrangeiros precisavam contratar um guia para não se perderem no caminho. Em vários daqueles aposentos haviam pinturas esplêndidas e valiosas imagens de santos, e as pessoas ajoelhavam-se diante delas, fazendo o sinal da cruz e mexendo os lábios como se estivessem orando. Em muitas daquelas igrejas, particularmente o local designado para a adoração pública, as colunas que sustentavam as pesadas abóbodas eram banhadas com prata. Seus altares eram ricamente ornamentados com grandes chifres dourados. Porém, os soldados, os Patriotas, estavam esfolando e retirando o ouro e a prata, cunhando-os em moedas para pagar os exércitos. AJB 150.1
Os peruanos também tinham vários dias festivos: os dias de cada um dos santos e também o dia de todos os santos. Entretanto, o festival mais importante que presenciei na igreja era a representação de Jesus e seus discípulos na última Páscoa e a última ceia. Uma grande mesa foi colocada perto do centro da igreja, cheia de pratos de prata, jarros, bandejas de prata, facas, garfos. E Jesus e os doze apóstolos, em tamanho real, estavam todos sentados em ordem ao redor da mesa, maravilhosamente vestidos com coberturas de prata na cabeça. Conforme iam entrando, as pessoas caiam de joelhos ao redor deles, aparentemente pasmas com a visão imponente. Enquanto os fiéis adoravam conforme o seu costume, os policiais saíam em busca de nós, os protestantes estrangeiros, exigindo que nos ajoelhássemos também. Estávamos tão ansiosos para ver como aquela festa era realizada que continuamos nos movendo e trocando de lugar, até que, depois da perseguição insistente e exigência de que nos ajoelhássemos, saímos e fomos visitar outras igrejas, que também estavam abertas naquela ocasião. AJB 150.2
Algumas daquelas igrejas tinham muitos sinos; e era quase impossível ouvir qualquer coisa quando a ocasião requeria que todos fossem tocados ao mesmo tempo. Depois que cheguei à cidade, eu estava na rua conversando com alguns amigos, quando de repente os sinos começaram a dobrar em um tom lento e fúnebre. Todas as lojas e negócios da cidade fecharam; carruagens e todos os veículos em movimento pararam; homens, mulheres e crianças, não importavam quais fossem os seus compromissos ou quão interessante estivessem as conversas, todos pararam de falar. Homens a cavalo desmontaram de seus cavalos. Todos os homens tiraram o chapéu e esperaram respeitosamente por um ou dois minutos até que o tom solene dos sinos mudasse para um tom mais alegre. Só então os negócios voltaram a funcionar e as pessoas colocaram de volta os seus chapéus, exatamente como estavam antes de os sinos soarem. AJB 151.1
Isso aconteceu ao por do sol. Perguntei ao meu amigo espanhol – que durante o acontecimento pareceu muito devoto – qual era o significado daquela pequena cerimônia. Ele me disse: AJB 151.2
– Ora, serve para que nos lembremos de Deus no final de cada dia. AJB 151.3
Considerei aquela cerimônia extremamente respeitosa, digna de imitação universal. No entanto, apesar de todas as cerimônias religiosas e todas as demonstrações públicas de respeito, aquele povo estava vivendo em contínua violação do segundo mandamento de Deus. Ali no Peru, os sacerdotes não hesitavam em frequentar casas de jogos e jogar bilhar aos domingos, assim como faziam em outros dias da semana. AJB 151.4
Quando os católicos romanos suprimiram a Inquisição, havia uma inquisição marcante na cidade de Lima que ocupava grande região. Os peruanos não apenas suprimiram essa diabólica instituição naquela época, mas também reduziram seus edifícios a pó, deixando um monte de ruínas, com exceção de apenas uma das salas do tribunal onde instrumentos de tortura haviam sido dispostos e arrumados para a cruel obra de torturar os hereges. Vimos muitos lugares em que as paredes estavam derrubadas, e nos disseram que aqueles locais eram por onde os instrumentos de tortura haviam sido retirados. A multidão havia deixado alguns antigos tinteiros em cima das escrivaninhas. AJB 151.5
Vimos também alguns calabouços sombrios que estavam abaixo das ruínas no subsolo. Em um canto notamos um leito feito de terra, erguido com pedras a alguns metros acima do solo úmido, que servia de cama para os prisioneiros. Mostraram-nos também alguns quartinhos que ainda permaneciam em pé. Aqueles eram para a tortura dos hereges, cujo tamanho era o mínimo suficiente para que uma pessoa ficasse em pé com as mãos para baixo, trancada atrás de uma porta – uma posição que permitia que a pessoa sobrevivesse por muito pouco tempo. Mas prefiro não dar mais detalhes no momento sobre essas pretensas instituições cristãs da Igreja Católica Romana, instituídas e mantidas durante séculos pelo papado, que concedeu poder a seus bispos e padres para punirem e condenarem à morte aqueles a quem chamavam de hereges, por meio de todos os tipos de tortura que demônios em forma humana poderiam inventar. AJB 152.1
Levamos a bordo vários passageiros de Callao para Trujillo, latitude 8° ao sul. Lá vendemos o Chatsworth por dez mil dólares a um comerciante espanhol. Sete mil dólares seriam pagos ali em Trujillo com moedas de prata. Como a exportação de moedas de prata e de qualquer tipo de ouro era proibida pelo governo peruano, várias medidas de peso foram inventadas pelos estrangeiros e suas embarcações. Como o acordo era que toda a prata fosse entregue a mim fora da rebentação das ondas, a bordo do Chatsworth, quando chegou a hora de partirmos de Lima, perguntei como aquele dinheiro seria entregue. O comerciante me disse: AJB 152.2
– Será entregue a você hoje à noite, por volta da meia-noite. AJB 152.3
– Mas como? – perguntei. AJB 152.4
– Enviaremos alguns índios (aborígenes) para entregarem a você. AJB 152.5
Perguntei se o dinheiro, quando levado, seria contado diante de mim antes que eu partisse do porto, para que eu identificasse o dinheiro e o número de moedas conforme descritos na fatura. AJB 152.6
O comerciante espanhol respondeu que ele havia especificado a quantia de prata na nota fiscal e que tudo havia sido entregue nas mãos de vários índios muitas semanas antes, todos sujeitos às suas ordens. AJB 152.7
– Mas o que fizeram com a prata? – perguntei. AJB 153.1
– Ah, enterraram em algum lugar. AJB 153.2
– E você sabe onde? AJB 153.3
– Não. AJB 153.4
– Que garantia você tem da parte deles de que eles guardaram a prata para você? AJB 153.5
– Nenhuma! AJB 153.6
– Como é que você sabe então que eles vão me entregar tudo esta noite? AJB 153.7
– Bom, há muito tempo que eles trabalham para mim. Eu já coloquei nas mãos deles milhares de dólares nesse mesmo esquema e lhes paguei muito bem quando entregaram o que lhes confiei. Nunca houve qualquer falha por parte deles até hoje. E eu nada temo. Eles são as pessoas mais honestas do mundo, especialmente quando vivem isolados, por conta própria. AJB 153.8
O Chatsworth estava a uns três quilômetros da costa. A rebentação na costa era muito perigosa para que os botes atravessassem. O governo usava um grande bote de dezesseis remos, conduzido por índios especialmente treinados para aquela tarefa; e quando a ocasião exigia que o grande bote se dirigisse até as embarcações na costa ou que retornasse atravessando a perigosa rebentação das ondas do mar, outro grupo de índios ficava na beira da praia, e quando percebiam que as ondas estavam subindo e que iriam rebentar sobre o barco, eles davam um grito terrível! O grito era um sinal para os remadores, que em seguida colocavam a proa do barco na direção da onda em rebentação. Nessa situação tensa, os remadores ficavam em suas posições, prontos para obedecer às ordens do timoneiro para que mantivessem o bote diretamente voltado para o mar. Dessa forma, ele conseguia transpor as ondas, sendo arremessado com violência pela rebentação das ondas. Em seguida, eles começavam a remar desesperadamente para ficar longe de algum banco de areia antes que viesse outra onda. Quando o bote estava retornando, e eles ouviam o grito dos vigias na praia, o timoneiro virava o bote diante da rebentação das ondas e os remadores remavam com toda a força. Depois de duas ou três lutas contra as ondas, o perigo passava. Os vigias na praia gritavam de alegria, juntamente com os barqueiros, anunciando a todos que estava tudo bem. AJB 153.9
As pessoas daquela região, e em outros lugares ao longo da costa, possuem outro tipo de bote, que chamam de “caballos”, ou cavalos, pois navegavam neles como se estivessem montados em um cavalo. Aqueles caballos são feitos de grandes iris comuns, ou juncos, amarrados de maneira bem firme, medindo mais ou menos três metros de comprimento e menos de um metro de diâmetro em sua parte maior, afinando para cinco centímetros na pequena ponta. Aquela ponta acabava se tornando a proa do caballo, ficando fora d’água de maneira proeminente para que cortasse o mar. A parte grande era aquela em que “montavam”. Somente aqueles que eram bem treinados podiam “montar” naquele tipo de “cavalo”, ou pelo menos mantê-lo com o lado certo virado para cima, mas não por muito tempo. As pessoas, especialmente os índios, se movimentavam pela água com esse tipo de barco de uma forma magistral, muito mais rapidamente do que em um barco comum. Eles usavam um tipo de remo duplo, ou afixado nas duas extremidades, e se sentavam como se estivessem montados a cavalo. AJB 154.1
Foi interessante vê-los remar alternadamente em cada uma das pontas do barco para transpor a rebentação das ondas. E quando estavam prestes a passar por ela, eles se deitavam sobre o caballo, enquanto as ondas passavam por cima deles, e em seguida remavam outra vez antes que outra onda viesse. Disseram-me que aquele tipo de “cavalo” era muito importante em algumas partes da costa, onde a rebentação das ondas não permitiriam que um bote de um navio se aproximasse. As comunicações e despachos eram feitos por meio desses caballos, ou “cavalos” espanhóis. AJB 154.2
Os índios encarregados de nos entregar a prata tiveram que passar por aquele local perigoso na noite escura, enquanto seus vigias na praia aguardavam com grande ansiedade o retorno deles em segurança. Quando acertamos o relógio à noite, pedi que meu irmão, o imediato chefe, ficasse no convés até meia-noite, e se ele visse alguém flutuando na água, aproximando-se de nós, deveria me chamar. À meia-noite ele me chamou dizendo que havia dois homens na água ao lado do navio. Abaixamos baldes de água vazios e um lampião aceso. Os índios desataram os sacos cheios de prata, que estavam firmemente presos com cordas embaixo dos caballos, e colocaram a prata nos baldes para que a içássemos até o convés. Quando toda a prata estava a bordo, os índios pareceram muito felizes por cumprirem seu trabalho. Para mim parecia impossível que os índios conseguissem passar pela perigosa rebentação àquela altura da noite. Nós lhes demos uma rápida e singela refeição enquanto estavam sentados em seus “cavalos-marinhos”, pois não ousavam sair deles. Porém, logo se afastaram o mais rápido que puderam para tranquilizar seus companheiros que os aguardavam na praia e enfim receber o pagamento que o mercador espanhol prometera. E assim como o comerciante havia me garantido, cada moeda foi entregue a mim conforme a fatura. AJB 154.3
Então, entreguei o Chatsworth para o comprador espanhol, me despedi de meus oficiais e tripulantes (meu irmão me sucedeu no comando do Chatsworth e o segundo oficial o sucedeu como imediato), e permaneci a serviço dos novos proprietários para fazer comércio no Oceano Pacífico. AJB 155.1
Em seguida, viajei para Lima a bordo de uma escuna peruana. Eu estava ciente de que estava me arriscando demais nas mãos desse desconhecido e sua tripulação, pois eles poderiam pensar que aquela grande quantia de dinheiro que coloquei nas suas mãos valia mais do que minha própria vida; porém, eu não tinha outro meio de transporte para Lima. Esforcei-me para não demonstrar nenhum tipo de medo, nem falta de confiança nele como homem honrado, mas fiquei observando-o atentamente e tive anseio de que a embarcação mantivesse um curso direto e sem desvio de rota. AJB 155.2
Ancoramos na Baía de Callao depois de sete dias. Na chegada, ele se recusou a entregar os meus sete mil dólares em prata que eu havia colocado sob o seu cuidado até que chegássemos ao Callao, alegando que o governo peruano não lhe tinha permitido a entrega. Ele havia compreendido muito bem toda a questão quando eu entregara o dinheiro aos seus cuidados. Era para ele me devolver quando chegássemos ao Callao. Ele também sabia que, se ele declarasse qualquer item pertencente a um estrangeiro a bordo, não importava o quão honestamente fosse a procedência, o governo apreenderia o item e usariam para si. Portanto, naquela atual conjuntura, ele não queria me deixar pegar a minha prata e nem estava disposto a informar o governo que havia prata a bordo de sua escuna. AJB 155.3
Em seguida, a escuna zarpou imediatamente rumo a outro país, levantou a âncora e saiu mar a fora. Logo fiquei sabendo das intenções desonestas e perversas do comandante. Naquela ocasião eu estava a bordo de um baleeiro de New Bedford e vi o comandante saindo com a escuna à plena marcha. O capitão H. tripulou seu barco baleeiro e logo conseguimos alcançar a escuna. Ainda assim o comandante se recusou a me entregar a prata, até que percebeu que seria inútil resistir. Então, muito relutantemente, ele permitiu que eu recebesse a prata, prosseguindo sua viagem. AJB 156.1
Transferi a minha prata a bordo do navio americano Franklin, 74, cujo comandante era o comodoro Stewart, até que estivéssemos prontos para partirmos pelo mar. Outros americanos tinham que fazer o mesmo para guardarem seus pertences em segurança. AJB 156.2
O Sr. Swinegar, nosso comerciante peruano, deu um grande jantar para os capitães e comissários de bordo da Esquadra norte-americana, no dia 22 de fevereiro, em homenagem ao aniversário do general Washington. Como eu era a única pessoa na mesa que tinha decidido não beber vinho, nem bebida forte, por serem intoxicantes, o Sr. Swinegar afirmou a alguns de seus amigos que estavam com ele à mesa que iria me influenciar para que bebesse vinho com ele. Ele encheu o seu copo e me desafiou a beber com ele. Respondi ao desafio enchendo meu copo com água! Ele se recusou a beber a menos que eu enchesse meu copo com vinho e o acompanhasse. Eu disse: AJB 156.3
– Sr. Swinegar, não posso, pois decidi definitivamente nunca mais beber vinho. AJB 156.4
Àquela altura, todos olhavam para nós. Mas o Sr. Swinegar ainda esperava que eu enchesse o meu copo com vinho. Vários pediram para que eu condescendesse com o pedido dele. Um dos tenentes da esquadra, sentado a certa distância disse: AJB 156.5
– Bates, com certeza você não vai se recusar a tomar um copo de vinho com o Sr. Swinegar. AJB 156.6
Respondi que não poderia fazê-lo. Senti-me constrangido e triste por ver que um grupo tão alegre insistisse tanto que eu bebesse um copo de vinho, a ponto de quase se esquecerem do jantar maravilhoso bem diante deles. Ao ver que não conseguiria me convencer, o Sr. Swinegar não me pressionou mais. AJB 156.7
Naquela época, as minhas profundas convicções com respeito a fumar charutos me permitiram decidir também que, a partir daquela noite, nunca mais fumaria qualquer tipo de tabaco. Aquela vitória elevou meus sentimentos e pensamentos acima da fumaça do tabaco, que tinha, em grande medida, obscurecido minha mente, e me libertou de um ídolo que eu havia aprendido a adorar entre os marinheiros. AJB 157.1