Depois que Dario tomou o reino, vemos que Daniel continuou tendo a primazia acima dos outros príncipes, e veio a ser o primeiro-ministro do reino. É claro que isso suscitou inveja, e os homens passaram a maquinar como tomar sua posição. Dirigiram-se, pois, ao rei Dario e disseram: NPE 107.1
Ó rei Dario, vive eternamente! Todos os presidentes do reino, os prefeitos e sátrapas, conselheiros e governadores concordaram em que o rei estabeleça um decreto e faça firme o interdito que todo homem que, por espaço de trinta dias, fizer petição a qualquer deus ou a qualquer homem e não a ti, ó rei, seja lançado na cova dos leões. Agora, pois, ó rei, sanciona o interdito e assina a escritura, para que não seja mudada, segundo a lei dos medos e dos persas, que se não pode revogar. Por esta causa, o rei Dario assinou a escritura e o interdito. Daniel, pois, quando soube que a escritura estava assinada, entrou em sua casa e, em cima, no seu quarto, onde havia janelas abertas do lado de Jerusalém, três vezes por dia, se punha de joelhos, e orava, e dava graças, diante do seu Deus, como costumava fazer (Daniel 6:6-10). NPE 107.2
Ele tinha o costume de orar três vezes ao dia; e quando o rei Dario lhe proibiu de orar a Deus, Daniel não se importou com isto. Não fechou a janela e se assentou na poltrona para que que não soubessem se estava orando ou não. Em vez disso, ajoelhou-se e orou como de costume. NPE 107.3
Finalmente, esses homens tinham em mãos o que queriam. Escutaram Daniel orar. Sem dúvida, já o tinham escutado antes, mas era nessa oração que tinham interesse. Dirigiram-se ao rei e disseram: NPE 107.4
Esse Daniel, que é dos exilados de Judá, não faz caso de ti, ó rei, nem do interdito que assinaste; antes, três vezes por dia, faz a sua oração. Tendo o rei ouvido estas coisas, ficou muito penalizado e determinou consigo mesmo livrar a Daniel; e, até ao pôr-do-sol, se empenhou por salvá-lo. Então, aqueles homens foram juntos ao rei e lhe disseram: Sabe, ó rei, que é lei dos medos e dos persas que nenhum interdito ou decreto que o rei sancione se pode mudar. Então, o rei ordenou que trouxessem a Daniel e o lançassem na cova dos leões. Disse o rei a Daniel: O teu Deus, a quem tu continuamente serves, que Ele te livre. Foi trazida uma pedra e posta sobre a boca da cova; selou-a o rei com o seu próprio anel e com o dos seus grandes, para que nada se mudasse a respeito de Daniel. Então, o rei se dirigiu para o seu palácio, passou a noite em jejum e não deixou trazer à sua presença instrumentos de música; e fugiu dele o sono. Pela manhã, ao romper do dia, levantou-se o rei e foi com pressa à cova dos leões. Chegando-se ele à cova, chamou por Daniel com voz triste; disse o rei a Daniel: Daniel, servo do Deus vivo! Dar-se-ia o caso que o teu Deus, a quem tu continuamente serves, tenha podido livrar-te dos leões? Então, Daniel falou ao rei: Ó rei, vive eternamente! O meu Deus enviou o Seu anjo e fechou a boca aos leões, para que não me fizessem dano, porque foi achada em mim inocência diante dEle; também contra ti, ó rei, não cometi delito algum (Daniel 6:13-22). NPE 107.5
Quê? Não havia ele quebrado a lei? Sim! Mas o rei tinha entrado num campo indevido, e, portanto, não constituía uma ofensa contrariá-lo. E foi isso que Deus mostrou. NPE 108.1
Qual é a lição? Deus estava dizendo: “César, não entre em Meu território; fique do seu lado da cerca. No minuto em que você invade aqui, dou aos Meus súditos o direito de desobedecer-lhe. Vou vindicá-los nisso”. E foi isso que Ele fez. NPE 108.2
Assim, a disputa entre as ingerências do governo civil no domínio de Deus e a fidelidade a Deus prosseguiu até que veio Jesus Cristo. Nessa época, o império romano dominava o mundo. Referindo-se a isso, Macaulay afirma: NPE 108.3
Foi a mais sublime encarnação do poder, um monumento, o maior e mais poderoso [império] já construído por mãos humanas e ao qual foi permitido aparecer neste Planeta. NPE 108.4
Quando veio Jesus Cristo, toda atenção que Lhe foi dada se resumiu a anotar Seu nome e cobrar-Lhe o imposto devido, assim como o faziam com o gado. Mas Ele tinha uma missão neste mundo, que era trazer liberdade à mente, liberdade ao pensamento, libertar os cativos que estavam presos pelo poder do pecado. Estava encarregado de apresentar o caráter de Deus e anunciar o Reino de Deus. Podemos ler acerca disso logo no primeiro capítulo de Marcos: NPE 108.5
Depois de João ter sido preso, foi Jesus para a Galileia, pregando o evangelho de Deus, dizendo: O tempo está cumprido, e o reino de Deus está próximo; arrependei-vos e crede no evangelho (Mr 1:14-15). NPE 108.6
O império romano tinha muitos deuses e muitos senhores, mas o deus que se sobrepunha a todos era o próprio Estado Romano. O povo considerava César como líder do governo, alguém divino, e o adoravam como a própria encarnação do governo. Raciocinavam assim: “Roma conquistou o mundo. Os deuses de Roma o fizeram, e o principal dentre eles é o Estado romano”. A religião deles não era simples teoria. Era extremamente prática. A esse respeito, quero tirar alguns momentos para ler um breve relato escrito pelo historiador Gibbon: NPE 108.7
A religião das nações não constituía mera doutrina especulativa professada nas escolas ou pregada nos templos. As inumeráveis deidades e ritos do politeísmo estavam intimamente ligados a todas as circunstâncias de negócios ou prazeres, da vida pública ou privada; e parecia impossível escapar de sua observância, sem ao mesmo tempo renunciar ao comércio humano e a todas as funções e entretenimentos da sociedade. […] Os espetáculos públicos constituíam parte essencial da prazenteira devoção dos pagãos, e cumpria aos deuses aceitar como a mais grata das oferendas os jogos que o príncipe e o povo celebravam em honra de seus festivais peculiares. O cristão que, com piedoso horror, evitava a abominação do circo ou do teatro, via-se cercado de armadilhas infernais em todos os entretenimentos em seu convívio, cada vez que seus amigos, invocando os deuses da hospitalidade, vertiam libações à felicidade uns dos outros. Quando a noiva, resistindo com relutância bem notável, era forçada, nos ritos matrimoniais, a transpor o umbral de sua nova habitação, ou quando a melancólica procissão avançava, a passos lentos, em direção à pira funerária, nessas interessantes ocasiões, o cristão se via obrigado a abandonar as pessoas que lhe eram mais queridas, para não receber a culpa inerente a tais cerimônias religiosas. Toda ocupação ou arte que tivesse o mínimo a ver com a construção e ornamentação de ídolos trazia o estigma da idolatria. NPE 109.1
As tentações perigosas, que de todos os lados se escondiam em uma emboscada para surpreender o crente descuidado, o assaltavam com violência redobrada nos dias de solenidades. Tão ardilosamente foram elas acomodadas e distribuídas no decorrer do ano que as superstições sempre se revestiam da aparência de prazer e virtude. […] Nos dias de festividades populares, era costume dos anciãos adornar suas portas com lamparinas e ramos de laurel, e coroar suas cabeças com grinaldas de flores. Essa prática inocente e elegante era tolerada como mera instituição civil. Mas, infelizmente, acontecia que as portas ficavam sob a proteção dos deuses guardiões; e o laurel era sagrado ao amante de Dáfine. Quanto à grinalda de flores, apesar de frequentemente usada como símbolo tanto de alegria quanto de luto, havia, em sua origem primária, sido dedicada ao serviço da superstição. Os cristãos tementes que eram persuadidos nessas circunstâncias a condescender com os costumes de seu país e com as ordens dos magistrados, labutavam sob deprimente apreensão pela reprovação de sua própria consciência, pelas censuras da igreja e pela ameaça da vingança divina [Edward Gibbon, The History of the Decline and Fall of the Roman Empire, p. 523-526]. NPE 109.2
E, assim, os cristãos mal podiam se mexer. Não podiam ir ao funeral ou ao casamento de algum amigo devido às práticas idólatras ligadas a essas cerimônias. Seu cristianismo o separava completamente de seus amigos e do governo, pois os romanos não permitiam qualquer interferência com sua religião. De acordo com Neander, havia uma lei que afirmava: NPE 110.1
Qualquer que introduzir novas religiões cuja tendência e caráter sejam desconhecidos, e pelas quais a mente das pessoas seja perturbada, deverá, se pertencer aos da classe alta, ser banido, e, se pertencer aos da classe baixa, ser punido com a morte. NPE 110.2