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    Capítulo 8

    Chegando em casa. Viagem à Europa. Uma pedra singular no oceano. O inesperado começo do inverno. A viagem chega ao fim. Outra viagem. Situações perigosas na Baía de Chesapeake. Criterion em perigo. Naufragados durante uma tempestade de neve. Uma visita a Baltimore. A bordo do Criterion outra vez. Carregamento a salvo. Mais uma viagem. O furacão. O fim da viagem. Casamento. Outra viagem. O capitão rizando as velas em seu sonho.AJB 89.1

    O intendente naval do cartel nos proporcionou a cada um de nós o equivalente a uma semana de provisão para a viagem. Fomos agraciados com um tempo bom, e chegamos a Boston no terceiro dia de viagem de Nova Londres, onde vendemos o que sobrou das provisões. O dinheiro foi suficiente para pagarmos a passagem e comprar algumas roupas. Um amigo e vizinho do meu pai, o capitão T. Nye, estava em Boston a negócios e me emprestou trinta dólares, o que me permitiu comprar algumas peças de roupa decentes para me apresentar aos meus amigos. Na noite seguinte, 14 ou 15 de junho de 1815, tive o prazer indescritível de estar na casa dos meus pais, em Fairhaven, Massachusetts, em companhia de minha mãe, irmãos, irmãs e amigos, todos muito felizes por eu estar de volta ao círculo familiar e muitíssimo ansiosos para ouvir o relato dos meus sofrimentos e provações durante os seis anos e três meses em que estive ausente. Eles queriam ouvir o meu relato, pois a minha situação a bordo dos navios de guerra britânicos, bem como na prisão, durante os últimos cinco anos, tornara extremamente difícil a chegada até eles de qualquer uma de minhas cartas.AJB 89.2

    Todos bem sabiam que eu não tinha nada para exibir como fruto de meus seis anos e quatro meses de sofrimento e trabalho intensos, senão algumas roupas velhas e gastas, e uma pequena sacola de lona que não teve nenhuma utilidade desde aquela minha tentativa frustrada de fugir a nado do navio de guerra, em 1814. A única coisa que eu tinha era a minha experiência, cujo relato levou todos ao meu redor a chorar tão copiosamente que preferi naquele momento mudar de assunto.AJB 89.3

    Esses homens que julgam saber das coisas disseram ao meu pai que, se eu algum dia voltasse para casa, eu seria como outros marinheiros de guerra bêbados. Meu pai estava viajando a negócios quando cheguei, mas voltou em poucos dias. Nosso reencontro o afetou profundamente devido à intensa emoção. Finalmente, ele voltou ao normal e me perguntou se eu tinha prejudicado minha constituição física.AJB 90.1

    – Não, pai! – respondi. – Fiquei enojado com os hábitos intemperantes das pessoas com quem tive de conviver. Não tenho nenhum desejo em especial por bebidas fortes – essas foram mais ou menos minhas palavras, e isso o aliviou naquela época. Eu agora renovava os laços de confiança com alguém que havia sido meu companheiro desde pequeno.AJB 90.2

    Depois de algumas semanas após meu retorno, um velho amigo de escola chegou a New Bedford num navio novo, e me contratou como seu segundo-imediato para viajar com ele para a Europa. A nossa viagem era para Alexandria, na Virgínia. Ali faríamos um carregamento com destino a Bremen, na Europa, para depois voltarmos para Alexandria.AJB 90.3

    Na viagem de ida, navegamos ao redor do norte da Inglaterra e da Irlanda. Os marinheiros chamavam aquela passagem de “caminho do norte”. Muitas vezes os marinheiros preferiam aquele percurso em vez de irem pelo lado sul dessas ilhas, pelo canal inglês. Naquele trajeto a noroeste da Irlanda, a cerca de 320 quilômetros da costa, está localizada uma rocha solitária, elevada a 15 metros acima do nível do mar, chamada pelos navegadores de Rockal. Ela tem o formato de um cone e parece com um pão de açúcar, ou um farol, à distância. Estávamos indo em direção a ela, e quando conseguimos observá-la ao meio-dia, estávamos nos aproximando dessa rocha singular no oceano.AJB 90.4

    Como o navio estava progredindo bem, com a ajuda de uma brisa constante, o capitão se aventurou a conduzir a embarcação perto do Rockal. O mar precipitava-se sobre suas reluzentes laterais, como provavelmente vinha fazendo desde o dilúvio, o que dava a aparência de um vidro polido em todos os lados. Essa rocha sempre foi um terror para os marinheiros quando se aproximam dela durante uma tempestade. Se aquela rocha pudesse falar, que histórias trágicas poderia ela contar! Histórias de milhares de tempestades terríveis e de centenas de milhares de vezes em que o mar furioso se precipitou por todos os seus lados. Histórias de como centenas de navios sobrecarregados, com um único ricochete ao ser atingido por uma tempestade, foram destruídos e despedaçados de súbito. Histórias de pobres marinheiros sobressaltados, desavisados e despreparados, engolidos ao pé da rocha. Histórias tristes e trágicas que só conheceremos na íntegra na ressurreição dos mortos! E ainda assim, a rocha permanece inabalável e inamovível desde o dia em que o Criador a fez.AJB 90.5

    Depois de uma viagem bem-sucedida, ancoramos no rio Weser, cerca de 48 quilômetros abaixo de Bremen. O inverno começou antes mesmo de descarregarmos toda a carga, de modo que fomos obrigados a ficar ali até a primavera. O fechamento daqueles rios frequentemente ocorre em uma noite, e um longo inverno se inicia. É incrível observar como o gelo aumenta tão rapidamente num curto período de seis horas de maré cheia, chegando até mesmo de quatro metros e meio a seis metros de espessura ao longo das margens. Até aquele momento ainda não tínhamos visto nenhum gelo. O dia estava agradável: o vento havia mudado para o leste com um claro por do sol. O nosso capitão e o timoneiro subiram a bordo para ancorar o navio e posicioná-lo entre dois desembarcadores especiais que se estendiam perpendicularmente de uma barragem construída à margem do rio até as águas profundas. O propósito dessa estrutura era criar um canal aonde se poderia jogar gelo esmiuçado e retirado das embarcações que ali se abrigavam.AJB 91.1

    Os nativos haviam previsto que o rio estaria coberto de gelo antes do amanhecer. Algumas horas após escurecer, o gelo começou a se formar e aumentar tão rápido que, mesmo com o forte vento enchendo as nossas velas e todos os homens no molinete tentando enrolar a amarra da âncora – que estava fincada junto ao cais principal –, não conseguíamos aproximar o navio da margem, na tentativa de fugirmos do gelo avassalador e da força da maré alta. Pela manhã, ao nascer do sol, pareceu-nos aconselhável cortar a corda do molinete e prensar o navio horizontalmente entre os ancoradouros para que não ficasse solto e à mercê da ação do gelo, e para nos proteger de uma inevitável destruição. Mas felizmente o navio tomou o rumo certo, e, dentro de alguns minutos, graças à ação propulsora da maré e do gelo, foi conduzido entre os ancoradouros até a margem do rio ao longo da barragem. Esses “diques” são aterros erguidos para evitar que as águas do mar inundem as terras baixas. Uma extremidade das nossas cordas foi imediatamente levada até as campinas e amarrada à madeira submersa, a fim de nos manter livres do gelo no fluxo e refluxo da maré. A esta altura julgamos que o gelo acumulado durante a noite já estava a seis metros de altura em nosso interior, na margem. O navio foi bem danificado pelo gelo durante o inverno. Depois de fazermos de maneira completa os reparos necessários, voltamos para Alexandria no verão de 1816.AJB 91.2

    Viajei outra vez de Alexandria para Boston, em Massachusetts, como imediato do navio Criterion. De lá, carregamos o navio e navegamos para Baltimore, onde descarregamos a nossa carga, fizemos outro carregamento e zarpamos para Nova Orleans, em janeiro de 1817. Foi nesse mês que começou um dos invernos mais rigorosos jamais visto em anos. Relatarei agora uma das circunstâncias que vivi para provar esse fato.AJB 92.1

    Um navio da Europa, com um carregamento de passageiros, ancorou na Baía de Chesapeake, cerca de 65 quilômetros abaixo de Baltimore. Os passageiros viajaram no gelo até o porto e cidade de Anápolis, a mais ou menos três quilômetros de distância. Eu estava na cidade de Anápolis nessa época, me esforçando para encontrar cordas e âncoras para aliviar o Criterion da situação perigosa em que ele se encontrava, como contarei posteriormente.AJB 92.2

    Ao sairmos do porto e velejarmos rio abaixo durante a tarde, percebemos que o gelo se formava tão rapidamente ao redor do nosso navio que corríamos perigo de sermos seriamente prejudicados. Assim que alcançamos a foz ou a entrada do rio, o timoneiro deu ordens para prepararmos para ancorar ali e ficarmos até o amanhecer. O capitão e eu não concordamos e tentamos persuadi-lo a continuar a toda marcha até que o navio estivesse fora da área de gelo. No entanto, ele pensava o contrário e decidiu ancorar ali mesmo, na Baía de Chesapeake, na desembocadura do rio Patapsco, a uns 25 quilômetros abaixo de Baltimore. A maré estava tão baixa que o navio encalhou no banco de areia. Nessa situação, tínhamos que tirar o navio daquele encalhamento, pois, caso contrário, o gelo ficaria cortando o casco do nosso navio até a maré subir. Trabalhamos todos arduamente desde o início da manhã, fixando nossas âncoras em terra firme. A essas âncoras foram atados cabos estendidos até o navio e tentávamos içar o navio para fora do banco de areia e livrá-lo da ação do gelo. A maré, contudo, começou a subir; e quando ela chegou ao máximo, concluímos que poderíamos navegar sobre o banco de areia, mas precisávamos trazer de volta nossas âncoras. Enquanto eu e outros colegas puxávamos uma delas, com a ajuda de um longo bote, a maré abaixou e o gelo começou a nos comprimir com tanta força que fomos obrigados a deixar a âncora e voltarmos em direção à embarcação. Ao nos aproximarmos a sota-vento e estarmos para colocar as nossas mãos no navio, o gelo de repente se soltou de onde estivera preso por alguns instantes a barlavento, e nos levou para longe da embarcação, para uma estreita área de água limpa, formada pelo desprendimento do gelo contra o lado do navio, passando pela proa e popa. Quando conseguimos pegar os nossos remos para remarmos rumo ao navio, já havíamos desviado vários metros a sota-vento; e a área de água limpa se estreitou tanto que os remos passavam por cima do gelo, sendo agora inúteis. Então, lançamos mão da extremidade solta do gelo para içarmos o navio, mas o gelo partiu-se tão rapidamente em nossas mãos que não conseguimos segurar o navio. O capitão e o piloto estavam fazendo o que podiam, jogando remos e vários objetos flutuantes, cordas, em nossa direção, mas éramos levados pela correnteza com a mesma rapidez que as coisas que eles jogavam. Assim, em poucos instantes, estávamos completamente cercados em uma imensidão de gelo que nos afastava da nossa embarcação, para baixo da Baía de Chesapeake, na mesma velocidade da maré baixa, e corríamos o risco de sermos levado por um forte vento do noroeste.AJB 92.3

    Todos nós naquele barco estávamos vestidos com roupas finas de trabalho, e com pouco espaço para nos movimentar e impedir nosso congelamento. Já estávamos naquele bote desde as 2 horas da tarde. Ao por do sol, olhamos para todos os lados para descobrirmos como poderíamos nos movimentar e nos direcionar, caso o mar quebrasse o gelo que nos confinava. Julgamos que estávamos a uma distância de 20 ou 25 quilômetros até a nossa embarcação, à medida que ela se desvanecia da nossa vista. A costa distante a sota-vento parecia inacessível devido ao gelo. A perspectiva de nos livrarmos até o dia seguinte nos parecia impossível, mesmo se qualquer um de nós conseguisse sobreviver à noite fria e penosa que estava diante de nós. Algumas luzes espalhadas na direção do vento pela costa ocidental de Maryland, a uns 11 ou 12 quilômetros de distância, ainda nos deram um raio de esperança, embora estivessem, naquele momento, inacessíveis. Mais ou menos às 9 horas da noite, o gelo começou a se romper exatamente onde estávamos, e rapidamente ficamos livres e em mar aberto. Remamos contra o vento em direção a uma das luzes acima mencionadas, e em algumas horas as luzes da costa se apagaram.AJB 93.1

    Após seis horas de remadas incessantes contra o vento e o mar, o bote atingiu o fundo, a cerca de 200 metros da costa. Pouco após deixarmos o bote, devido ao pesado acúmulo de gelo criado pelo impacto da água do mar no barco, tanto por dentro quanto por fora, ele logo se encheu de água e congelou, ficando o contorno de sua borda coberto de gelo.AJB 94.1

    O segundo imediato passou com dificuldade por entre o gelo e a água, e foi até a margem procurar por uma casa, enquanto nos preparávamos para amarrar o bote. Quando ele voltou, nos trouxe boas notícias: não muito longe dali havia uma casa, e a família estava fazendo uma fogueira para nós. Já era três da manhã e havíamos passado mais ou menos treze horas no bote, quase sem pararmos de trabalhar e nos mexer, na tentativa de evitar que morrêssemos congelados (com exceção dos últimos 15 ou 20 minutos).AJB 94.2

    Ordenei que todos saíssem do bote. A dor ao entrarmos na água, que estava com a profundidade de aproximadamente um metro, foi indescritível quando o estado gélido no interior do nosso corpo aflorou à superfície da pele. Gritei outra vez para que saíssem do bote. De repente vi que “Tom”, meu padrinho, estava de um lado do bote em um sono tão profundo, ou morrendo devido à rigidez do frio, que não consegui acordá-lo. Eu o puxei para fora do bote, na água, mantendo a cabeça dele levantada, até que ele gritou:AJB 94.3

    – Onde estou? – e se agarrou ao bote.AJB 94.4

    Vi que ainda havia outro no bote.AJB 94.5

    – Stone! Por que você não sai do bote?AJB 94.6

    – Eu vou sair! Assim que tirar meus sapatos e meias.AJB 94.7

    Ele tinha ficado tão desnorteado que não percebeu que seus pés – bem como os de nós todos – haviam ficado imersos na água e no gelo a noite toda. Nós o tiramos do bote e fomos andando todos juntos. Quando conseguimos abrir caminho por entre o gelo recém-formado e chegamos até a praia, estávamos tão entorpecidos que não fomos capazes de escalar o rochedo. Instruí os marinheiros a seguir pela praia até chegaram à primeira fenda, e eu viria com Stone assim que conseguisse colocar nele seus sapatos.AJB 94.8

    Ao entrar na casa, vi uma lareira bem grande e meus colegas com os pés próximos ao fogo, contorcendo-se em agonia por causa dos membros inchados e a dor pungente. Pedi que se afastassem do fogo. Graças à providência divina estávamos todos, finalmente, num lugar seguro; e fiquei aliviado da ansiedade e expectativa que quase me haviam dominado. Retirei-me para o canto oposto daquele cômodo e caí de tão exausto. Assim que o gentil anfitrião e sua esposa me acudiram, eu saí da casa, apesar de me sentir ainda fraco, e fiquei no lado de fora onde havia neve profunda. Parecia-me que ali dentro seria quase impossível sobreviver à dor excruciante que torturava todo o meu corpo, especialmente a minha cabeça; dor esta causada pela baixa temperatura em que meu corpo estava. Assim, o Senhor me livrou e me salvou. Louvado seja o Seu Nome.AJB 95.1

    Por manter-me afastado do fogo até que minha temperatura gélida voltasse ao normal, eu fui o único que escapei da condição de ter membros continuamente dormentes e doença prolongada. Muitos anos depois disso me encontrei com o Tom, na América do Sul. Ele me disse o quanto sofrera, e ainda sofria, desde aquela noite perigosa.AJB 95.2

    O capitão Merica e sua esposa (pois este era o nome de família de nossos gentis amigos) nos proporcionaram uma refeição quente, e nos receberam bondosamente em sua casa e à sua mesa. Depois do nascer do sol, pudemos ver, com a ajuda de um binóculo, o Criterion flutuando, sendo levado à deriva no gelo em nossa direção. O Criterion mostrava, a meio mastro, uma bandeira com sinal de perigo. Entretanto, nenhum ser humano podia se aproximar do navio enquanto ele estivesse no gelo flutuante. Achamos que os nossos companheiros no Criterion estavam afundando, pois o gelo havia perfurado o casco antes de nos separarmos deles. Assim que o Criterion chegou a seis quilômetros da costa de onde estávamos, pudemos ver o capitão e o timoneiro andando no convés, vigiando para ver qual seria o destino deles. Em cima do rochedo, levantamos uma bandeira para eles, mas aparentemente não a notaram. Vimos que o Criterion estava inclinado para estibordo, deixando os buracos feitos pelo gelo a bombordo para fora da água. Antes do cair da noite, o navio passou por nós mais uma vez à deriva na parte superior da baía, com a maré alta. E assim continuou por mais dois dias, até que uma violenta tempestade de neve do nordeste o conduziu ao seu destino final, deixando-o preso.AJB 95.3

    Quando a tempestade por fim diminuiu, utilizamos um binóculo para vermos o Criterion. Ele estava parado no Love Point, no lado leste da Baía de Chesapeake, a uns 20 quilômetros de distância. Como não havia nenhuma forma de nos comunicarmos com os nossos companheiros sofredores, a não ser por meio de Baltimore, e de lá rodear a parte superior da baía, atravessando o Susquehanna, decidi ir até Baltimore e informar os consignatários e expedidores da situação do navio. O capitão Merica me disse que o percurso seria de cerca de 48 quilômetros, e boa parte desse percurso em meio ao bosque e por estradas ruins, principalmente naquela ocasião, pois a neve estava com mais ou menos um metro de profundidade. Ele disse:AJB 96.1

    – Se você decidir ir, lhe emprestarei meu cavalo.AJB 96.2

    – E eu lhe empresto um dólar para as possíveis despesas – completou a esposa do capitão.AJB 96.3

    Depois de uma cansativa viagem desde a manhã até por volta das nove da noite, cheguei a Baltimore. Os consignatários me providenciaram dinheiro para pagar pelas nossas refeições no litoral, por tanto tempo quanto precisássemos ficar, e me autorizaram a pedir que os mercadores em Anápolis nos fornecessem cordas e âncoras, se precisássemos delas, a fim de colocarmos o Criterion de volta ao mar.AJB 96.4

    Cerca de duas semanas depois de termos nos separado do Criterion, o clima tornou-se mais ameno e moderado, e o gelo à deriva já começava a se partir. O capitão Merica, juntamente com alguns dos seus escravos, nos ajudou a tirar o nosso bote do gelo e a reparar os estragos. Com a nossa tripulação um tanto já recuperada, e mais dois escravos fortes do capitão Merica, empurramos o nosso bote até que ele atingiu águas profundas. Em seguida, subimos nele, e, com os nossos remos e uma vela emprestada, seguimos através do gelo quebrado em direção ao Criterion. Quando nos aproximamos do navio, percebemos que ele estava inclinado para a costa, e uma forte corrente estava nos levando para além do navio, rumo a um lugar perigoso, a menos que pudéssemos pegar uma corda para nos segurarmos. Gritamos, mas ninguém respondeu. Ordenei aos homens que gritassem o mais alto que pudessem até serem ouvidos. Dois escravos, com medo de ficarmos presos no gelo, soaram um ruído tão medonho que o cozinheiro colocou a cabeça na parte superior do navio e desapareceu imediatamente. Ao passarmos pela proa do Criterion, conseguimos pegar uma corda pendurada, que nos manteve em segurança. O capitão e o timoneiro vieram correndo em nossa direção, consternados, quando pulei no convés do navio para encontrá-los.AJB 96.5

    – Ora, ora – disse o capitão Coffin enquanto dávamos um aperto de mão. – De onde vens, Sr. Bates?AJB 97.1

    – Da costa ocidental de Maryland – respondi.AJB 97.2

    – Vejam só! Tinha certeza de que todos vocês estavam no fundo da Baía de Chesapeake. Fizemos seu funeral naquela noite em que vocês sumiram de nossa vista, nem imaginando que vocês pudessem sobreviver até o amanhecer!AJB 97.3

    As cordas do Criterion haviam se partido, e a âncora fora perdida na violenta tempestade que o levou para a costa. A carga ainda estava intacta. O capitão e o timoneiro consentiram que eu voltasse a fazer parte da tripulação e retornássemos para procurarmos cordas e âncoras na cidade de Anápolis. E foi isso que fizemos. Entretanto, fomos impedidos de retornar por vários dias em virtude de outra tempestade avassaladora que deixou o Criterion com um rombo e cheio de água, fazendo com que as pessoas a bordo abandonassem o navio a tempo de se salvarem.AJB 97.4

    Durante o inverno, conseguimos salvar quase toda a carga do navio, que estava em estado danificado. Fizemos isso com a ajuda de uma equipe de escravos contratados, já que os nossos marinheiros estavam doentes. Os homens designados para analisar o estado do Criterion julgaram que havia 170 toneladas de gelo em seu casco e cordame, formadas pela arremetida das águas do mar sobre o navio, bem como pelo congelamento. Depois de desmontá-lo na primavera, vendemos o Criterion por vinte dólares!AJB 97.5

    Voltei para Baltimore e comecei outra viagem, mas agora como imediato-chefe de um navio de dois mastros chamado Frances F. Johnson, de Baltimore, rumo à América do Sul. A tripulação era toda negra, pela escolha peculiar do capitão. Lamentei muitas vezes por sermos os únicos brancos a bordo, pois, às vezes, éramos colocados em circunstâncias inusitadas por sermos a minoria.AJB 98.1

    Com exceção de alguns itens secos, descarregamos a carga no Maranhão e no Pará – este último lugar a cerca de 160 quilômetros acima da foz do rio Amazonas, sendo a foz do rio na linha do equador. Do Pará, levamos outro carregamento de volta para Baltimore. Na viagem de volta para casa, paramos na ilha francesa de Martinica. Atracamos na costa e ficamos por lá alguns dias em meio aos outros navios. O oficial da marinha surpreendentemente ordenou que o capitão e eu subíssemos a bordo do nosso navio, e nos repreendeu por não termos cumprido com algo insignificante relacionado às ordens dadas por ele; e por causa disso, ordenou-nos que partíssemos na manhã seguinte. Consideramos aquela uma mísera e severa atitude, e sem precedentes; porém, obedecemos assim mesmo. Mal havíamos partido da ilha francesa de Martinica, quando um furacão terrível começou – comum nas Índias Ocidentais por volta do equinócio de outono –, devastando várias embarcações e marinheiros. Em algumas horas, cerca de 100 barcos foram despedaçados e afundaram com as tripulações em seus ancoradouros, e outros empurrados para o mar numa condição desesperante. Apenas dois navios ficaram a salvo no porto!AJB 98.2

    Foi com muita dificuldade que conseguimos sair da ilha durante o dia por causa da mudança repentina do vento, que agora soprava desordenadamente por todos os quadrantes da bússola. Estávamos bem convencidos de que uma tempestade violenta estava às portas, e fizemos as preparações que julgávamos necessárias para enfrentá-la. Felizmente, escapamos da parte mais violenta da tempestade e quase não sofremos danos, chegando com segurança a São Domingo. Uma corveta da cidade de Nova Iorque chegou a São Domingo poucos dias depois de nós; e o capitão dessa embarcação falou a respeito da tempestade e do desastre em Martinica que acabei de contar. Ele disse:AJB 98.3

    – Chegamos a certa distância do porto de Martinica no início do furacão. Quando vimos que estávamos à mercê da tempestade, na escuridão da noite, nós, na esperança de ficarmos presos ao navio, nos amarramos firmemente às hastes de metal ao redor do convés do barco, que estava todo inclinado, a ponto de ficar de cabeça para baixo. Nesse momento, o barco foi furiosamente levado pelo vento, nos deixando para trás. Não tínhamos nenhuma ideia de quando, como ou para onde ele tinha ido.AJB 99.1

    O milagre deles foi que sobreviveram à tempestade. Mas o mais maravilhoso, no nosso caso, foi que fomos levados daquele lugar, enquanto cuidávamos dos nossos legítimos afazeres, de uma maneira inesperada e sem precedentes. Apenas os olhos oniscientes de Jeová podiam prever a terrível destruição que estava por vir em algumas horas sobre aqueles que haviam ficado para trás. Certamente, mediante Sua misericórdia salvadora e cuidado providencial, fomos impelidos para longe da costa bem a tempo de ainda sermos contados entre os viventes.AJB 99.2

    “Deus opera de maneiras misteriosas.
    Maravilhas Ele faz”.
    AJB 99.3

    Ali em São Domingo, o capitão Sylvester me deu o comando do F. F. Johnson para que eu prosseguisse com a carga de volta para casa, em Baltimore. Ele ficou em São Domingo para se livrar do restante da carga externa. Na hora de viajar, fiquei doente, e, temendo que pudesse ser febre amarela, trouxe minha cama para o tombadilho superior e permaneci exposto ao ar livre, dia e noite, e logo fiquei curado. No início de janeiro de 1818, chegamos a Baltimore com segurança. De lá, voltei para a casa dos meus pais em Fairhaven, Massachusetts, depois de ficar ausente por mais ou menos dois anos e meio. No dia 15 de fevereiro de 1818, me casei com a senhorita Prudence M., filha do capitão Obede Nye.AJB 99.4

    Seis semanas depois, embarquei em mais uma viagem, como imediato do navio Frances, de New Bedford, cujo capitão era o Sr. Hitch. Seguimos para Baltimore, Maryland, onde pegamos um carregamento de tabaco para levarmos à Bremen, na Europa. De lá seguimos para Gottenberg, na Suécia, onde pegamos um carregamento de barras de ferro e voltamos para New Bedford, Massachusetts.AJB 99.5

    Vou aqui relatar um incidente que ocorreu em nossa viagem de Bremen para Gottenberg a fim de mostrar como as pessoas, às vezes, fazem coisas durante o sono.AJB 100.1

    Estávamos passando por um lugar chamado de “Scaw”, acima do Cattegat, um lugar não muito seguro durante um vendaval, em companhia de um grande comboio de navios mercantes britânicos com destino ao Mar Báltico. O capitão Hitch permaneceu no convés (algo incomum para ele) até meia-noite, momento da troca dos vigias de bombordo. A noite estava excepcionalmente iluminada, agradável e clara, com uma brisa gostosa soprando por todos os lados, e todo o comboio seguindo à diante em ordem normal. O capitão Hitch me pediu que eu seguisse determinado navio grande e cuidasse para que ficássemos o mais próximo possível de sua popa; e disse que, se víssemos esse navio em alguma dificuldade, poderíamos alterar o nosso curso a tempo de evitarmos o mesmo problema. Antes que as minhas quatro horas de guarda tivessem chegado ao fim, o capitão veio até o corredor e disse:AJB 100.2

    – Sr. Bates, o que pensa que está fazendo, deixando as velas nessa posição? Enrole as velas! Onde é que está aquele navio?AJB 100.3

    – Lá, senhor! – respondi. – À mesma distância que estava quando o senhor desceu para repousar!AJB 100.4

    Vi que os olhos dele estavam arregalados, mas não acreditei que ele estivesse em seu juízo perfeito por causa da maneira categórica como falou comigo. Então eu disse:AJB 100.5

    – Capitão Hitch, você está dormindo!AJB 100.6

    – Dormindo! – disse ele em contrapartida. – Nunca estive mais acordado em toda minha vida. Enrole as velas!AJB 100.7

    Senti-me insultado com aquele tratamento arbitrário incomum e sem a menor razão aparente. Então gritei a plenos pulmões:AJB 100.8

    – Todos a postos! Todos rizando as velas!AJB 100.9

    Meu grito acordou o capitão, que perguntou:AJB 100.10

    – Qual é o problema?AJB 100.11

    – Você veio dando ordens para enrolarmos as velas!AJB 100.12

    – Eu fiz isso mesmo? Não sabia. Peça que parem o que estão fazendo. Vou descer outra vez.AJB 101.1

    Como o capitão Hitch era coproprietário do navio, e com a perspectiva de ganhar alguns milhares de dólares com um carregamento de ferro, ele carregou o navio ao extremo, mas não pareceu prever qualquer perigo em especial até que nos deparamos com uma tempestade de neve ao entrarmos no Mar do Norte. Aquela tempestade nos fez ir para o norte e nos aproximou do Rockal num momento de grande tempestade, o que deixou a tripulação muito ansiosa e temerosa, até que nos convencemos de que estávamos fora de todo e qualquer perigo.AJB 101.2

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