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    Capítulo 9

    Racionamento de água. Lançando a carga no mar. Racionamento de mantimentos. Uma tempestade monstruosa. A Corrente do Golfo. O marisco morto e o furacão impetuoso. Agonia silenciosa. Chafurdando entre os mares. Uma coincidência singular com relação à oração. Mais a respeito do vendaval. O vazamento aumenta. Provisão de mantimentos e água potável. A reunião. Rumando às Índias Ocidentais. O relatório sobre a viagem. Chegada segura às Índias Ocidentais.AJB 103.1

    O nosso pesado carregamento de ferro, bem como a nossa luta para prevalecermos contra os vendavais do ocidente fizeram com que o nosso navio trabalhasse tanto que começou a ter um largo vazamento. Colocamos umas 20 toneladas de ferro no tombadilho superior, o que diminuiu um pouco o trabalho do navio, mas ainda assim os ventos prevaleciam. Conseguimos progredir rumo ao oeste, porém lentamente. Por fim, o capitão Hitch falou:AJB 103.2

    – Precisamos racionar a água – e perguntou com quanto eu achava que deveríamos começar.AJB 103.3

    – Dois litros por dia – respondi.AJB 103.4

    – Dois litros por dia! – ele disse. – Eu nunca bebi dois litros de água por dia na minha vida. Bebo dois copos de café pela manhã e duas xicaras de chá à noite; e uns dois ou três copos de alguma bebida alcoólica quente durante o dia. Tudo o que bebo é mais ou menos isso! (Até então as sociedades de temperança não eram conhecidas). – Viajo pelo mar há mais de 30 anos e nunca me colocaram num regime de racionamento.AJB 103.5

    Eu não havia tido essa sorte: já tinha passado 5 anos em racionamento de comida e havia ficado vários meses com pouca água.AJB 103.6

    – A própria ideia de estar em racionamento de água aumentará a sua vontade de beber mais água – falei ao capitão.AJB 103.7

    Apesar de não saber o que eu estava falando, ele disse:AJB 104.1

    – Vamos esperar mais um pouco, pois eu não acredito que já tenha alguma vez bebido dois litros de água por dia.AJB 104.2

    Como o navio não progredia e o vazamento aumentava, o capitão Hitch disse:AJB 104.3

    – Amanhã é seu dia de guarda. Acho melhor você começar a controlar a quantidade de água e fechar os barris de água.AJB 104.4

    – Muito bem, senhor! – eu disse. – Mas quanto devo medir para cada homem?AJB 104.5

    – Bem, comece com dois litros!AJB 104.6

    E assim foi feito, e o capitão levou para a cabine os seus dois litros de água. Às 7 horas da noite eu andava pelo convés, e, como a escotilha da popa estava aberta, ouvi o capitão Hitch dizer no escuro um forte sussurro:AJB 104.7

    – Lem! Você tem água? – Lemuel T. era sobrinho do capitão e fornecia as refeições na proa.AJB 104.8

    – Sim, senhor!AJB 104.9

    – Me dê uma água, por favor!AJB 104.10

    Instantes depois, ouvi o capitão beber num só fôlego a água do frasco do sobrinho como se estivesse com muita sede, e o surpreendente era que mal tinham passado 12 horas desde que medimos a cota de água do capitão. Na mesa de café da manhã no dia seguinte, perguntei:AJB 104.11

    – Capitão Hitch, como você se virou com a água ontem à noite? Foi o suficiente?AJB 104.12

    Ele sorriu e reconheceu que ele estava equivocado.AJB 104.13

    – A ideia de estar em racionamento, como você havia dito, faz a pessoa sentir sede. Nunca passei por isso antes.AJB 104.14

    Depois de enfrentarmos outro forte vendaval, o capitão Hitch ficou bem preocupado, temendo que o Frances estivesse carregado demais para conseguir cruzar o Atlântico em segurança. Diante das circunstâncias, realizamos uma reunião com a tripulação e decidimos aliviar o peso do navio nos desfazendo de parte da carga, ou seja, lançaríamos as 20 toneladas de ferro no mar. Em poucas horas a missão estava cumprida, e as longas barras de ferro foram deslizando rapidamente para o seu lugar de descanso, a mais de oito quilômetros abaixo de nós, num lugar chamado pelos marinheiros de “Davy Jones’s Locker” (O Baú de Davy Jones) – uma expressão idiomática usada pelos marinheiros para se referir ao fundo do mar.AJB 104.15

    Mais 20 toneladas foram levadas para o convés. Aquele ato aliviou perceptivelmente o navio, possibilitando que progredisse com mais sucesso. No entanto, o capitão ainda estava com medo de continuar a viagem com todas as velas em plena operação, temendo que o vazamento do navio aumentasse e levasse todos nós para o fundo do oceano.AJB 105.1

    Como os nossos suprimentos foram ficando escassos, definimos uma quantidade fixa de bife e pão, pois o nosso pequeno depósito estava se esgotando. Todos começamos a ficar ansiosos para chegarmos logo ao nosso porto de destino. Às vezes, quando o capitão estava dormindo, nos aventurávamos a estender um pouco mais as velas a fim de ganharmos mais velocidade.AJB 105.2

    Após uma tempestade vinda do oeste, o vento virou para o leste durante a noite. A fim de aproveitarmos aquele vento favorável, quando foi feita a troca de guarda pela manhã, subimos todas as velas que estavam encurtadas para aproveitarmos a brisa que soprava, a fim de ganharmos velocidade, apesar de o mar estar um tanto bravio. O capitão Hitch veio então ao convés, observou a situação por alguns instantes e disse:AJB 105.3

    – Sr. Bates, é melhor você guardar a vela do mastro principal. E também as velas inferiores de suporte. Agora iremos dobrar e encurtar uma das velas de joanete.AJB 105.4

    Ele concluiu que, feito isso, o navio viajaria com muito mais facilidade e mais velocidade.AJB 105.5

    Por fim, os ventos nos favoreceram e estávamos fazendo um rápido progresso. Nos últimos três dias, o vento vinha aumentando do sudeste, e, de acordo com os nossos cálculos, se continuasse assim, deveríamos chegar à New Bedford dentro de três dias, contabilizando 70 dias em alto-mar desde que partimos de Gottenberg. Porém, nos decepcionamos, pois no terceiro dia, à meia-noite, a ventania chegou a um nível assustador. Os elementos em fúria pareciam desafiar cada criatura viva que se movia sobre a superfície do mar. Em todos os meus anos de experiência como marinheiro, eu nunca testemunhara sinais tão prodigiosos de uma tão terrível e devastadora tempestade nos céus. O mar havia subido a uma altura tão terrível que, às vezes, tínhamos a impressão de que ele se precipitaria sobre nossos mastros antes que o carregado navio tivesse tempo de subir e receber o impacto da crista das gigantescas e espumejantes ondas. A impressão que dava era que o furioso vento uivante acima do mar arrancaria cada nó das velas e nos lançaria impetuosamente de ponta-cabeça no abismo abaixo. As únicas velas que ousamos exibir eram a vela da gávea grande e a de traquete, todas encurtadas. Precisávamos de mais que isso a fim de acelerarmos o navio para fugirmos do mar espumante, mas temíamos que as rajadas pesadas de vento arrancassem as cordas das velas e nos deixassem à mercê do poder do mar para sermos engolidos juntamente com o nosso carregamento de ferro e esquecidos no fundo do mar.AJB 105.6

    Ordenamos os vigias que estavam descendo a não se despir de suas vestimentas, mas que deveriam estar prontos para qualquer aviso inesperado. Percebemos que estávamos na extremidade leste da Corrente do Golfo: um dos lugares mais temidos por causa das contínuas tempestades no litoral americano ou em qualquer outro litoral no mundo. Cumpria-nos atravessá-lo em algum lugar se quiséssemos chegar ao nosso destino.AJB 106.1

    Entrei na cabine por um momento para informar o capitão Hitch da crescente tempestade. Ele não estava disposto a vê-la, mas disse:AJB 106.2

    – Sr. Bates, mantenha o navio paralisado diante do mar!AJB 106.3

    Aquela era a nossa única esperança. Pouco tempo antes, a cana do leme havia quebrado a mais ou menos um metro da cabeça do leme, devido a uma onda violenta que nos atacou na proa. Havíamos emendado o leme, e agora, eram necessários quatro homens experientes para driblar habilmente, com cordas e roldanas, a situação de emergência e dirigir o leme do navio diante das águas colossais e espumantes. Nosso contínuo trabalho era mais ou menos assim:AJB 106.4

    – Virem o leme a estibordo!AJB 106.5

    – A estibordo então, senhor – era a resposta.AJB 106.6

    – Fiquem firmes, aí vem outra onda gigantesca!AJB 106.7

    – Estamos firmes – era a resposta. – Para onde direcionamos o navio agora?AJB 107.1

    – Para noroeste – era a resposta. – Firme, mantenham a proa nessa direção. Muito bem!AJB 107.2

    Se o navio não tivesse obedecido ao leme como fez, parece que o terrível mar teria invadido impetuosamente nossas cabines e varrido todos nós para dentro dele.AJB 107.3

    – Virem o leme a bombordo! Aí vai mais uma onda a bombordo! Firmes agora! O mar vai atingir nossa popa em cheio.AJB 107.4

    Ao amanhecer, a chuva caiu de forma tão torrencial que mal conseguíamos ver a forma das ondas, exceto quando se precipitavam contra nós. A chuva era o prenúncio ameaçador de uma variação climática ainda mais terrível – se isso fosse possível – do que a situação em que nos encontrávamos. Minha pouca experiência já tinha me ensinado que a Corrente do Golfo2A Corrente do Golfo é causada por um grande corpo de água que sai do Golfo do México, fluindo para o nordeste do ponto sudeste da costa da Flórida. Em alguns lugares, ela passa bem próxima a terra, tornando-se maior à medida que avança pela nossa costa do norte, onde se ramifica em direção às margens de Terra Nova. Ali a Corrente do Golfo às vezes chega a várias centenas de quilômetros de largura, diminuindo e aumentando conforme influenciada pelos fortes ventos. Às vezes essa corrente varre a nossa costa sul à velocidade de quase 5 km/h. Ao deixarem a costa dos Estados Unidos ou se aproximarem dela, os marinheiros sempre encontram a água muito mais quente nessa corrente do que nas duas costas americanas. Por causa dessa corrente, eles também se deparam com condições climáticas instáveis e tempestuosas que não se encontram em nenhum outro lugar. era mais perigosa aos navegantes por causa disso do que qualquer outra parte navegável do mar.AJB 107.5

    Sem nenhum aviso, o vento nos atacou no quadrante oposto entre as 7e 8 horas da manhã, e as velas foram jogadas contra o mastro. O grito unânime foi:AJB 107.6

    – O navio está de ré!AJB 107.7

    – Vire o leme a bombordo!AJB 107.8

    – Depressa! Depressa!AJB 107.9

    Subi uns nove metros ao mastro principal com tanta rapidez que me parecia haver pisado no convés não mais do que duas vezes. ChegandoAJB 107.10

    lá, desenrolei das cravelhas os braços de traquetes que estavam amarrados. Então gritei:AJB 108.1

    – Todos no convés agora!AJB 108.2

    Descendo do topo das ondas, o navio obedeceu ao leme; a proa virou para o nordeste. A vela de traquete encheu-se novamente de ar. Se não fosse isso, inevitavelmente teríamos sucumbido com a popa para frente, devido à demasiada impetuosidade da onda seguinte. O vento soprou furiosamente do oeste por alguns instantes, e então, de repente, foi se extinguindo até nos deixar em uma calmaria.AJB 108.3

    – Virem rapidamente o leme a estibordo!AJB 108.4

    – Um de vocês, chame o capitão!AJB 108.5

    – Bolinem a vela da gávea grande. Levantem a vela de traquete! Todos no topo do mastro agora, e enrolem a vela grande da gávea. Depressa homens! Amarrem-na à verga o mais rápido possível!AJB 108.6

    O navio estava agora incontrolável. O mar, conforme descrevi acima, estava do lado a sota-vento, e parecia que iria ou atingir nossos mastros ou viraria nosso casco para cima a barlavento. Ao sair da cabine e observar a nossa situação, o capitão gritou:AJB 108.7

    – Oh, chegou a hora de minha morte! – e ficou um tempo em silêncio.AJB 108.8

    O navio agora se contorcia e distorcia, como uma pessoa em completa agonia. A forma como o navio se retorcia de uma maneira tão violenta e ruidosa tornou difícil que os homens chegassem ao topo do mastro. Antes que conseguissem alcançar a vela da gávea, o vento, vindo do sudoeste, nos atingiu como um tornado. Isso era o que temíamos, e a razão de corrermos para salvarmos as velas de capa, se fosse possível. Levou algum tempo para que os homens conseguissem amarrar as velas. Feito isso, o navio deu um solavanco e toda a tripulação se aglomerou no tombadilho superior, com exceção de Lemuel T. e George H., o sobrinho e o filho do capitão (e mais um passageiro), que, por ordens dele mesmo, foram amarrados no compartimento inferior com medo de serem varridos do convés para o mar. O capitão disse:AJB 108.9

    – Cozinheiro, você pode orar conosco?AJB 108.10

    O cozinheiro se ajoelhou onde podia se segurar, e o restante de nós se manteve em pé. Assim, o cozinheiro orou com muito fervor, pedindo que Deus nos protegesse e nos salvasse da terrível e feroz tempestade. Aquela foi a primeira oração que ouvi durante uma tempestade em alto-mar. Mesmo sendo pecadores como éramos, acredito que Aquele, cujo ouvido não está fechado para o grito dos marinheiros angustiados, lembrou-se da nossa oração; pois as Escrituras testificam em Salmos 107:25-28: “Pois Ele falou e fez levantar o vento tempestuoso, que elevou as ondas do mar. Subiram até aos céus, desceram até aos abismos; no meio destas angústias, desfalecia-lhes a alma. Andaram, e cambalearam como ébrios, e perderam todo tino. Então, na sua angústia, clamaram ao Senhor, e Ele os livrou das suas tribulações”.AJB 109.1

    Parecia que estávamos exatamente na situação narrada pelo salmista. Depois de termos feito tudo o que podíamos para nos salvar da fúria dos elementos na noite anterior, até que o navio ficasse incontrolável, as velas fossem amarradas e o leme amarrado a sota-vento, já havíamos perdido “todo tino”, e só nos restava orar ao Senhor e clamar por Sua ajuda. Estávamos nos segurando no cordame no tombadilho superior em completo silêncio e profunda contemplação, aguardando para ver como terminaria o nosso caso. O capitão Hitch indubitavelmente sentiu que havia negligenciado o seu dever ao deixar de nos confiar às mãos de Deus diariamente durante a nossa longa viagem; e agora, naquele momento de angústia, sem sabermos o que fazer, a confiança lhe faltou.AJB 109.2

    Ele e o cozinheiro eram os únicos religiosos professos a bordo. Ambos eram da Igreja Batista conservadora de New Bedford, Massachusetts. O cozinheiro era o único negro a bordo. Eu sempre acreditei que o Senhor ouviu de modo especial a oração dele. Durante toda a viagem, ouvi o capitão orar apenas uma única vez. Eu havia ficado quase exausto de labutar ao extremo em algumas tempestades já mencionadas aqui, e eu estava perdendo duas horas da minha guarda noturna a fim de descansar, quando ouvi o capitão Hitch, em uma parte escura da cabine, orando ao Senhor, pedindo para que Ele restaurasse as minhas forças e a minha saúde. Ao dizer que o ouvi orar uma única vez, não tenho a intenção de desrespeitá-lo, pois ele era um homem de coração bom, um cavalheiro, e sempre tratava seus oficiais e marinheiros com bondade e respeito.AJB 109.3

    Depois que o cozinheiro orou, eu me prendi ao cabo que sustentava o mastro de ré bem a barlavento a fim de observar a furiosa e impetuosa tempestade. O capitão estava logo atrás de mim; o segundo-imediato e toda a tripulação estavam todos enfileirados ao longo do tombadilho superior, a barlavento, aguardando em silêncio o nosso destino a ser decidido. O vento era tão incessante em sua fúria que lançava sobre nós a crista das ondas do beligerante mar, nos ensopando como uma chuva torrencial vinda das nuvens. O esforço da embarcação para manter-se flutuando parecia ser mais do que ela podia suportar. O que era de se admirar é que o navio ainda permanecesse firme por tanto tempo. Às vezes quando o navio descia o pico de algumas daquelas montanhas de água, com a lateral virada para outra parede de água, parecia que ele iria virar por completo ou descer com tanta impetuosidade que jamais tornaria a subir. Depois de algum tempo, o mar ao oeste tornou-se furioso, e os dois mares lutavam um contra o outro como se fossem inimigos, um tentando ser vitorioso sobre o outro. Estávamos em silêncio já há três horas, quando eu disse:AJB 110.1

    – O navio não vai mais suportar por muito tempo.AJB 110.2

    – Também acho – completou o capitão.AJB 110.3

    – Acho que nossa única esperança é soltarmos as asas do traquete e colocá-las entre esses dois mares, em sentido noroeste – eu disse.AJB 110.4

    – Vamos tentar isso então! – respondeu o capitão.AJB 110.5

    Logo o nosso bom e velho navio seguia seu curso por entre aquelas duas aterradoras montanhas de água, sendo severamente golpeado, primeiro à direita e depois à esquerda. E quando quase morríamos de medo de ele ser tragado, o navio tornava a emergir acima de toda aquela água, sacudindo-se, como se uma mão invisível o estivesse sustentando por baixo; e com suas duas pequenas asas estendidas, a ponto de romper-se devido ao vento furioso e uivante que as invadia, o navio parecia se mover para frente outra vez, com uma energia quase imortal. Assim o navio seguiu até a meia-noite por entre os mares agitados, tremulando, se retorcendo e vergando com o pesado carregamento de ferro e com as almas preciosas que buscava preservar em resposta à oração do pobre marinheiro negro, a qual subira do convés superior, deixando para trás o confuso furação e a terrível tempestade, rumo às mansões de paz do Governador dos Céus, da Terra e do mar.AJB 110.6

    Naquela ocasião, minha esposa foi visitar um dos nossos parentes a alguns quilômetros de casa, onde se encontrava um ministro metodista que viera fazer uma visita à família. O ministro lhe perguntou por que ela parecia tão calma. Ele ficara sabendo que o navio do seu esposo estava atrasado e que muito temor havia quanto à segurança da embarcação, principalmente naquele momento, já que havia uma tempestade violenta e impetuosa. O ministro disse:AJB 111.1

    – Quero orar pela tripulação daquele navio.AJB 111.2

    A oração dele foi tão fervorosa e causou uma impressão tão forte em minha esposa que ela tomou nota da hora em que ele orou. Quando cheguei à minha casa, examinamos as anotações do diário de bordo do navio, e constatamos que era de fato a mesma tempestade.AJB 111.3

    Por volta da meia-noite, como o vento havia virado para o norte e o oeste, e o furioso mar daquele quadrante se tornara extremamente perigoso, continuando a dominar e subjugar o mar do sudeste, que também estava enfurecido, achamos melhor, por segurança, mesmo indo contra o vento, direcionar o rumo do navio para o mar do sudeste, liberando ao máximo as velas dianteiras encurtadas para que o navio se afastasse do mar irregular e furioso que vinha em direção contrária do oeste. Portanto, durante quatro dias fomos levados adiante pelo furioso furacão do oeste a fim de nos salvarmos de uma situação que considerávamos muito mais perigosa, a saber, ficar com as velas encurtadas, expondo o navio àqueles mares opostos e irregulares que ameaçavam deixar a embarcação incontrolável e aos pedaços. Então tivemos que mudar o rumo para noroeste, pois nos deparamos com um vendaval violento do sudeste. Não demorou muito e nossas velas foram todas apertadas contra o mastro por um vento do noroeste. Em seguida, depois de alguns minutos, veio uma calmaria por 15 minutos, deixando o navio incontrolável.AJB 111.4

    Então, um furacão impetuoso veio do oeste-sudoeste, e, por um período de quatro dias, foi mudando de direção indo pelo norte rumo ao leste. Nessa situação, nosso navio seguia uma rota para o nordeste por entre os mares em luta; mas depois dirigiu-se para o leste e sudeste, e em seguida para o sul e sudoeste. Dessa forma, em cerca de quatro dias, percorremos três pontos cardeais da bússola e nos encontrávamos centenas de quilômetros mais longe de casa do que no auge da tempestade. Aquela foi a tempestade mais fenomenal e exasperante que enfrentei em toda minha vida de marinheiro; tampouco cheguei a ler sobre algo parecido quanto à intensidade e duração. Mas o que nos deixou boquiabertos foi que o nosso bom e velho navio resistiu àquela grande provação. Entretanto, o vazamento do navio havia feito com que a bomba apresentasse em seu mostrador um número de 12 mil movimentos de sucção em 24 horas.AJB 111.5

    Outra vez, por unânime decisão, lançamos mais vinte toneladas do nosso carregamento de ferro dentro do mar. Tentamos nos direcionar para um porto do sul, mas os ventos de oeste continuaram a impedir o nosso progresso rumo ao oeste. O inverno agora havia acabado de começar. Nossas provisões de água e mantimentos estavam ficando tão escassas que estávamos a ponto de racionarmos a quantidade de provisões para cada marinheiro; enquanto isso, o trabalho constante nas bombas também diminuía as nossas forças.AJB 112.1

    Víamos alguns veleiros de vez em quando, mas estavam sempre a uma distância muito além do nosso alcance. Fizemos um esforço extra, tentando nos aproximar de um deles até ao anoitecer; e na tentativa de induzi-lo a se aproximar de nós, armamos um mastro na popa, amarramos nele um barril com alcatrão e ateamos fogo, a fim de fazê-los acreditar que havia um incêndio a bordo, para que viessem nos socorrer. Mas foi tudo em vão.AJB 112.2

    Pouco tempo depois, quando tudo parecia incerto, vimos uma embarcação vindo em nossa direção ao término de um vendaval, mais ou menos à meia-noite. A outra embarcação logo respondeu ao nosso sinal, levantando o lampião. Logo nos encontramos a uma distância onde um diálogo era possível:AJB 112.3

    – De onde vocês são? – perguntamos.AJB 112.4

    – Nova Iorque – foi a resposta.AJB 112.5

    – Para onde estão indo? – perguntamos outra vez.AJB 112.6

    – América do Sul.AJB 113.1

    – Podem nos fornecer algumas provisões de mantimentos?AJB 113.2

    – Claro que sim, o tanto que quiserem. Estamos cheios!AJB 113.3

    – Aproximem-se para que enviemos o nosso bote.AJB 113.4

    – Tudo bem!AJB 113.5

    O coração do capitão começou a bater descompassado quando iniciamos a descida do pequeno bote para buscarmos os mantimentos. Ele disse que as ondulações eram altas demais e que o bote afundaria. Disse ainda que não queria que eu fosse, pois perder alguns membros da tripulação àquela altura seria desanimador. Como poderia o navio ser salvo de sua condição de vazamento e naufrágio? Então lhe indaguei:AJB 113.6

    – Mas capitão Hitch, estamos quase sem nenhuma provisão de alimento, e agora temos a chance de nos abastecer.AJB 113.7

    Ainda assim ele se declarou indisposto a mandar que qualquer um tentasse ir. Então eu disse:AJB 113.8

    – Permita-me, então, chamar voluntários.AJB 113.9

    Ele continuou irredutível. Mas temendo perder a oportunidade, perguntei em alta voz:AJB 113.10

    – Quem, dentre vocês, será voluntário para ir comigo até o bote?AJB 113.11

    – Eu irei, senhor.AJB 113.12

    – Eu também irei.AJB 113.13

    – Eu também – disseram outros.AJB 113.14

    – Pronto, é o suficiente. Três bastam – eu disse.AJB 113.15

    Em poucos momentos nós já estávamos quase fora do campo de visão do nosso navio, rumando para a luz sinalizadora. Uma onda nos pegou, e a água encheu quase metade do bote. Dois de nós remavam e o outro tirava o excesso de água. Por fim, chegamos à embarcação. Por causa da agitação do mar, só conseguimos levar alguns barris de pão e farinha. Entreguei ao capitão uma ordem de pagamento para que acertasse o valor das provisões com nossos empregadores em New Bedford.AJB 113.16

    – Seu nome é Bates. Você tem algum parentesco com o Dr. Bates, de Barre, Massachusetts? – ele me perguntou.AJB 113.17

    – Sim. Ele é meu irmão.AJB 114.1

    – Vejam só. Ele mora perto da minha casa. Saí de lá algumas semanas atrás. Você quer mais um pouco de provisões?AJB 114.2

    – Não, senhor, só se o senhor nos rebocar até o lado a barlavento do nosso navio. Ficaríamos muito gratos.AJB 114.3

    E foi assim que aconteceu. Chegamos ao navio em segurança e logo estávamos com nosso suprimento de pão e farinha desembarcado em segurança no convés. O nosso bote foi guardado, e cada embarcação seguiu o seu destino. O capitão Hitch estava transbordando de alegria por termos retornado em segurança e pelas provisões que nos fariam chegar até o porto. Os ventos do oeste, no entanto, prevaleciam e o casco do navio estava coberto de algas e cracas, o que fazia com que movêssemos muito devagar. Preparamos um raspador com o qual fomos capazes de raspar algumas delas e tirá-las fora num momento de calmaria. Cracas grandes como ilhós e um lodo verde com uns 60 centímetros de comprimento subiam até a popa à medida que passávamos o raspador debaixo do casco. Tudo isso fora acumulado durante a nossa viagem.AJB 114.4

    Encontramos mais uma vez um veleiro das Índias Ocidentais, que nos forneceu três barris de água; depois desse, um navio de Portland nos forneceu um carregamento de batatas. Elas foram muito bem-vindas, não apenas por nos trazer uma variação na dieta, mas também para impedirmos o escorbuto, que é comum entre os marinheiros que são obrigados a subsistir a base de alimentos salgados. Em poucas semanas, conseguimos outro pequeno abastecimento de suprimentos e ficamos animados com a esperança de chegarmos a algum porto em alguns dias. Porém, as nossas esperanças se esvaíram outra vez quando os vendavais do oeste aumentaram, e nos arrependemos de não termos pegado mais suprimentos. Assim continuamos com o trabalho árduo, conseguindo às vezes avançar uma distância considerável em direção ao oeste, regredindo, no entanto, devido a algum temporal, quase a mesma distância que havíamos percorrido na semana anterior.AJB 114.5

    Conseguimos, mais três vezes, suprimentos que sobraram de outras embarcações com as quais nos deparamos, totalizando sete. Entre nós, uma frase que passou a correr na boca de todos era que no momento exato em que precisávamos de auxílio, ele vinha. Maus como ainda éramos, só podíamos reconhecer a mão do Deus misericordioso cuidando de todas as coisas. Por fim, começamos a nos desesperar, lutando em nossa condição desamparada contra os ventos quase contínuos do oeste. Convocamos todos para um concílio a fim de decidirmos, na perigosa situação em que nos encontrávamos, lutando pela vida, se deveríamos ou não mudar o rumo da viagem e procurarmos um porto em busca de socorro. A decisão foi unânime: seguiríamos em direção às Índias Ocidentais. Depois de navegarmos uns dois dias em direção ao sul, o vento nos tirou daquele quadrante. Como o navio agora seguia rumo a oeste, o capitão Hitch julgou que poderíamos chegar a um porto ao sul dos Estados Unidos. O vento, porém, mudou outra vez, e essa expectativa desvaneceu. O capitão Hitch então se pôs a lamentar por ter se desviado, por conta própria, da rota decidida pelo concílio. Ele quis que eu convocasse outro concílio e verificasse se a decisão seria seguir outra vez rumo às Índias Ocidentais. Toda a tripulação foi a favor de aderir à decisão anterior: seguir para as Índias Ocidentais, mas para que servia decidir? O capitão Hitch voltaria atrás assim que o vento soprasse a oeste. Eu falei que se ele fizesse isso, eu iria me opor a ele e insistiria em permanecer com a decisão que havíamos tomado no concílio. Foi uma votação unânime seguirmos rumo as Índias Ocidentais em busca de socorro. O capitão Hitch não estava presente.3Quando ocorre uma mudança nos termos estabelecidos na apólice de seguro naval, é necessário que ela seja feita pela maioria ou toda a tripulação reunida em concílio, e que fique registrado no diário de bordo da embarcação assegurada que a mudança teve lugar para a preservação da vida, da embarcação ou da carga. Somente assim é que os donos podem legalmente receber o seguro no caso de acontecer uma perda após uma mudança ou um desvio. O mesmo é necessário quando uma carga é lançada ao mar a fim de preservar vidas.AJB 114.6

    Pouco depois de mudarmos o nosso curso, encontramos uma escuna que vinha das Índias Ocidentais, com destino a Nova Iorque. Pedimos que quando chegassem, relatassem que o Frances, sob o comando do capitão Hitch, há 122 dias vindo de Gottenberg, estava seguindo em direção a São Tomas, nas Índias Ocidentais, em busca de socorro. Como nossos amigos haviam recebido cartas informando que havíamos partido de Gottenberg para New Bedford, quatro meses atrás – sendo que um terço desse tempo era suficiente para uma viagem normal –, muitos conjecturavam quanto ao nosso destino. Poucos, talvez ninguém, acreditava que ainda estivéssemos vivos.AJB 115.1

    Enquanto um navio de Nova Iorque deixava o porto para seguir rumo a New Bedford e Fairhaven, a escuna chegou e relatou a nossa situação. Cerca de 24 horas depois o navio chegou ao porto de Fairhaven com as notícias, um dia antes do correio. Minha esposa, meus pais e irmãs estavam fazendo uma visita a uma outra irmã minha, perto do porto. O senhor B., marido de minha irmã, os havia deixado em sua casa e estava parado no cais com alguns outros cidadãos de Fairhaven quando o navio chegou com as primeiras notícias de que uma escuna chegara a Nova Iorque das Índias Ocidentais, que ela havia se encontrado com o navio Frances, com o capitão Hitch no comando, na latitude tal e longitude tal, e que o navio havia partido de Gottenberg havia 122 dias, rumo a São Tomas – “em busca de socorro”. Com essa notícia inesperada, o marido da minha irmã correu de volta para casa e contou que o navio Frances não havia naufragado e rumava às Índias Ocidentais. Em poucos instantes, a notícia se espalhou por toda parte da vila trazendo alegria a outros corações, pois havia outros maridos e filhos a bordo do tão procurado navio Frances. Com a chegada do correio no dia seguinte, a informação foi confirmada. Em muitos anos, nenhuma outra notícia causou tanta alegria em Fairhaven como aquela. O principal proprietário do navio e do carregamento – o Sr. Roach de New Bedford – ficou mais feliz com a notícia de que toda a tripulação estava viva do que com o fato de que seu navio e carregamento não estavam perdidos. Todos estavam muito ansiosos para saber como havíamos nos mantido, por um período de tempo tão longo, com provisões e água suficientes apenas para metade daquele período. Queriam saber também o motivo do nosso atraso.AJB 116.1

    Chegamos com êxito a São Tomas, uma das ilhas virgens nas Índias Ocidentais, pertencentes à Dinamarca. Na noite anterior à nossa chegada, encontramos uma escuna que seguia o mesmo rumo que nós. A pedido do capitão Hitch, a escuna consentiu em nos acompanhar durante a noite, já que afirmava conhecer muito bem aquela região. A noite estava agradável, com um vento favorável. A escuna abaixou todas as suas velas, com exceção da vela de joanete, que ficou reduzida no topo. Quanto a nós, tínhamos todas as nossas velas em ação: as velas inferiores, a de joanete e o mastaréu, todas infladas com o vento agradável. O capitão da escuna parecia estar sem paciência porque não estávamos indo tão rápido para conseguirmos acompanhá-los. Mais ou menos à meia-noite, ele ficou a uma distância razoável para se ouvirem os gritos:AJB 116.2

    – Ei, vocês aí do navio!AJB 117.1

    – Olá! – respondeu o capitão Hitch.AJB 117.2

    – Você sabe o que eu faria com esse navio se eu estivesse no comando?AJB 117.3

    – Não! – foi a resposta do capitão Hitch.AJB 117.4

    – Bem, meu caro senhor, se eu estivesse no comando desse navio eu faria furos no casco e o mandaria para o fundo do mar juntamente com toda a tripulação!AJB 117.5

    O casco do navio estava tão cheio de craca e lodo que a velocidade em que navegávamos era a metade do que velejaríamos se estivéssemos com o casco limpo e desobstruído.AJB 117.6

    Por fim, chegamos no dia seguinte e nos sentimos profundamente gratos a Deus por ter nos preservado e nos sustentado durante os momentos perigosos que passamos. Mesmo depois que o navio já estava ancorado em segurança e as velas enroladas, levou um tempo para percebermos que estávamos, de fato, sãos e salvos no porto de São Tomas. Ao inclinarmos o nosso navio para limparmos o casco, ficamos espantados de ver a quantidade de lodo preso no casco, de 60 a 90 centímetros de comprimento, e cracas enormes no fundo. A “vistoria” concluiu que o navio poderia ser reparado a fim de prosseguir para os Estados Unidos.AJB 117.7

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